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Enfim, o Brexit. O que vem agora?

04 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Crédito da foto: Daniel Leal-Olivas / AFP

Celso Ming

Quem já foi rei nunca perde a majestade, diz o ditado. De outro jeito, alguém já disse que país que já foi sede de império continua mantendo comportamentos imperiais, mesmo muito depois de ter sido o que foi. Rússia, Irã, Turquia, Itália e França, de maneiras diferentes, podem ser apontados como exemplos disso. A Inglaterra, então, mais ainda.

Além de continuarem a se considerar imperiais, os ingleses imaginam que, em plena globalização, terão condições de gozar de plena independência, até porque seu centro de decisão está numa ilha que no passado foi considerada inexpugnável.

Depois de muito vaivém e 3 anos de 15 árduas rodadas de negociações, aconteceu a planejada troca de bandeiras, desfile de fanfarras e muita comemoração. O Brexit está formalizado desde a meia-noite do dia 31 de janeiro.

Mesmo depois de quase metade de sua população ter se manifestado contra a separação, a sensação prevalecente é de alívio, porque, afinal, o Reino Unido entende que sacudiu a dependência de Bruxelas e de tudo quanto a União Europeia significa em compromissos e em limitações de sua autonomia. Mas há razões de sobra para acreditar que a população inglesa não saiba o que está comemorando, porque o futuro parece ainda mais incerto.

Esse movimento de separação saiu caro, perto de US$ 170 bilhões até agora e, provavelmente, outros US$ 90 bilhões ainda a cair na conta do Tesouro inglês apenas com despesas de transição, conforme estimativas que variam pouco.

E há os negócios e os mercados que se perdem, mais a transferência de empresas e de empregos para países que não enfrentam as mesmas incertezas. Mas que importam esses custos e eventualmente outros quando comparados com vantagem maior, a da recuperação da autonomia, bem que não tem preço? Um império de fato olha com desprezo para mesquinharias argentárias dessa ordem...

O problema é que os ingleses não sabem o que os espera nem que novos compromissos acabarão por cercear a nova sensação de liberdade, que o governo do primeiro-ministro Boris Johnson tanto alardeia. O período de transição, previsto para terminar no fim deste ano, parece insuficiente para definir tantos acertos ainda a serem feitos entre as duas partes desse jogo.

Até agora, não se sabe, por exemplo, como ficarão os direitos dos ingleses que vivem fora do Reino Unido e dos demais europeus que vivem dentro do Reino Unido. Até que ponto poderão contar com o acesso aos serviços de saúde e de aposentadoria a que hoje têm direito? Os acordos preveem um sistema de regularização provisória para quem tem menos de cinco anos de residência no Reino Unido. Enquanto o reconhecimento dessa regulação não vem, os passaportes ficam retidos. Como crescem as pressões contra estrangeiros, o risco de que milhões de pessoas se tornem ilegais parece alto.

A situação das Irlandas é um mistério. A Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido, tem fronteira física com a Irlanda, membro da União Europeia. Pelas cláusulas da Paz de Sexta-feira Santa, não haverá interrupção do livre fluxo de mercadorias entre os dois países. Mas, para fins aduaneiros, o acordo prevê a criação de uma fronteira virtual ao longo do Mar da Irlanda. Sabe-se lá como isso vai funcionar.

O Reino Unido perderá o valioso mercado cativo da União Europeia, para onde é embarcada hoje, sem tarifas alfandegárias, mais da metade de suas exportações. Mas pretende compensar essa perda com um amplo acordo comercial com os Estados Unidos.

O primeiro-ministro Boris Johnson aposta que, até o final do ano, os tratados comerciais estarão sacramentados, quando se sabe que negociações desse tipo levam anos. Mais do que isso, para esses e outros acordos, os Estados Unidos não se contentarão apenas com acertos comerciais. Exigirão que o Reino Unido se engaje em mais amplos e mais profundos compromissos globais. No meio disso, poderá estar a necessidade de rever as atuais posições em relação às questões de preservação ambiental.

Enfim, ficará para ser avaliado se o Brexit não terá sido apenas uma troca de autonomia limitada por outra autonomia também limitada.

E é preciso ver ainda se esse movimento não detonará a desintegração da unidade britânica. Escócia e País de Gales já vêm lembrando que votaram a favor da permanência na União Europeia. E se é para observar o cumprimento da vontade do eleitor, os dois países podem também decidir por abandonar o Reino Unido.

Celso Ming é jornalista da agência estado, especializado em economia.

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