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Em algum lugar do passado

01 de Julho de 2020 às 00:01

Marcelo Augusto Paiva Pereira

A preservação da memória de um grupo social ou povo é fundamental para ele se identificar com a própria cultura, manifestada no tempo e no espaço pelas gerações.

Dentre tantas manifestações estão as convertidas em bens culturais pelo significado que transmitem. São temporalidades, bens culturais estratificados, carregam o tempo psicológico e a consciência humana da história e urge trazê-los ao presente e projetar, ao futuro, a memória que as sucessivas gerações deverão ter da própria cultura.

Esse resgate de bens culturais depende da escolha da intervenção a ser aplicada, que pode ser a conservação ou a restauração. A primeira é limitada, que pouco influi na materialidade e imagem da obra. A segunda é mais abrangente e é alvo de vários entendimentos acerca dos efeitos que produz.

No século XIX, Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc e John Ruskin defenderam posições opostas. Ao primeiro a restauração era o restabelecimento da obra como poderia, ou não, ter sido. Ao segundo, as intervenções necessárias, o absoluto respeito pela matéria original e evitar o falso histórico e o falso estético.

No século XX, Camillo Boito, Gustavo Giovannoni e Cesare Brandi defenderam outras posições, às quais restaurar é um processo científico, deve respeitar o passado (e não voltar a ele) e alinhá-lo ao tempo presente. Ao último deles a restauração deve distinguir os momentos históricos do bem, dentre os quais o período dela própria, e evitar a modificação irreversível da identidade dele.

A restauração modifica a relação espaço-tempo do bem ou obra e repercute na memória do grupo social ou povo. Se for exagerada poderá dar a ele características que nunca teve e o efeito, no grupo social ou povo, é a memória criada (falsificação da identidade artística e temporal do bem).

Deve enfatizar a constituição material sem ignorar as várias estratificações do bem (juízo crítico). Dá-se a ele nova destinação, com vistas a assegurar sua preservação, sem descaracterizá-lo. E, ainda, a restauração não deve transformá-lo em parque temático.

A Carta de Veneza (1964) acolheu o mínimo de intervenções para preservar a obra e sua atualização para o uso e conforto humano. Admite a restauração como intervenção excepcional, que exige acuação mais abrangente (arcs. 9 0 ao 1 3 0).

A memória se faz de diversas experiências no passado e também de símbolos, que servem de paradigmas às condutas atuais. A qualidade íntima, porém, é atingida por qualquer alteração no ambiente. Daí a importância do bem cultural e das técnicas de intervenção a ele aplicadas.

A restauração, então, é um processo científico e crítico de intervenção que, com cuidadosas alterações, atualiza e preserva para gerações atuais e futuras o bem ou obra resgatada de algum lugar do passado. Nada a mais.

Marcelo Augusto Paiva Pereira é arquiteto e urbanista.