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Ele não ‘bate bem’!

23 de Novembro de 2019 às 00:01

Ele não ‘bate bem’! Crédito da foto: Neusa Gatto

Neusa Gatto

Começo a entender o mecanismo de poder da casa. Chiconauta sempre se posiciona estrategicamente. Seja no meio do caminho. Entre mim e o Mestre. Na soleira da porta...atento.

Eu, que tou chegando agora, começo a delimitar o meu espaço. Nem sempre arrisco a passar por certos corredores onde se posta o Chico. Mas, pelo meu andar ele já vê minha determinação e abre caminho.

Não posso vacilar com ele. Como todos sabem aqui na casa, ele não bate bem... se é que me entendem. Não, não é diagnóstico. Preconceito. Inveja o ou que possam atribuir esse meu sentimento. Mas, seu olhar há sempre um certo “quê” de insegurança que ordena ataques.

Não sei. Não sou especialista no assunto. Então, me ponho aqui no sofá e fico a observar a movimentação. Fumaça, um gato meio zarolho, bem cinza, que apareceu por aqui sofre nas unhas do dito cujo.

Sempre pé ante pé ao atravessar o caminho dele. Nem respira. No meio do trajeto olha firme pro bichano birutinha que o fixa deitado no meio da sala. Mestre, espichado no tapete, dorme. Não se importa com quem entra, quem sai. Aliás, ama movimento. Dos outros. Prefere sempre a pacificação. Mas se apruma se for necessário.

Como o gato preferido, se me permitem dizer, aqui da moça que mora aqui, não me dou a enfrentamentos ou agressões entre espécies. Prefiro o que sou hoje: oficialmente o dono do coração dela.

Me acham enjoado? Pretensioso? Balanço minha cabeça negativamente. Olho pro teto a buscar pensamentos. Lembranças. Do dia em me levou no colo ao veterinário. Dos beijos e chamegos que me dá. Da permissão ao conforto de sua cama pra dormir em seu quarto. Ganho partes maiores de pasta de atum. Como sei? Olho as tigelas do Tigre, Fumaça e Mestre antes de abocanhar a minha. Um olhar longamente agradecido pra ela e me dou ao desfrute.

E tantas outras situações que me embasam em meus pensamentos e sentimentos. Portanto, me deixo ficar aqui afofado em almofadas a sentir as cenas que rolam no chão.

- Uáóuáá óóóó uáá óóóó. E lá estão os dois aos tapas. Chico e Fumaça. Mestre se levanta incomodado. Vai até os dois. Já sei, vai dar uma esculhambação daquelas. Nada. Fumaça sai de banda, rápido. E, então, Mestre lambe carinhosamente o nervosinho que, num gesto de agradecimento, abaixa a cabeça pra receber boas lambidas.

Os dois se separam. Chico vai pra cozinha, fuçar comida. Mestre volta a deitar. Do Fumaça, nem sombra. Saiu pro quintal pela janela. Só volta na madruga pra, folgadamente, se arrumar aqui num canto do meu sofá.Claro, com olhadas secas pra ele. Com seu olhar estrábico , espera. Volto ao meu sono. Antes de dormir ainda vejo Chico levantar a cabeça. Viu o inimigo. Mas, numa longa bocejada percebo que ele está fora de qualquer briga agora. Se acomoda onde está e também cai no sono.

Lá fora, ouço o vento e um piado esquisito de uma ave no escuro. Um lamento que me dá arrepios. Num pulo saio do sofá. Vou pro quarto. Me aconchego entre os pés dela e viajo por sonhos de pássaros fantasmas rondando a casa.

Neusa Gatto é jornalista e produtora de vídeo