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Elas só querem jogar!

22 de Janeiro de 2019 às 08:47

No universo dos jogos digitais, o feminino tem um lugar diferenciado com relação ao masculino, sobretudo quando os jogos estão na categoria agon, que são narrativas do gênero ação cuja mecânica oferece condições de igualdade entre os oponentes, para que vença o melhor. Nessa categoria, estão os famosos “jogos para meninos”, com temáticas de guerra, aventura, survival horror, esportes etc...

Em matérias relacionadas ao tema, é possível conferir que o número de mulheres que jogam tem aumentado, porém, gostaria de colocar uma questão: será que tem aumentado ou será que o público feminino tem finalmente assumido que joga videogame? Digo isso porque jogo essa categoria desde menina com minhas amigas, mas não era algo que conversávamos com os meninos, pois sempre ouvi dizer que videogame é coisa de menino. Até hoje, causo certo espanto quando digo que jogo videogame e mais espanto ainda quando revelo que prefiro os jogos de agon.

Pode parecer exagero para quem não está inserido nesse universo, mas as pesquisas em jogos digitais, por um bom tempo, continuarão cheias de lacunas. Isso porque boa parte das meninas não revela que elas jogam alguns títulos relacionados à agon ou que, quando jogam on-line, criam avatares (personagens) masculinos. E essa atitude decorre do fato de que, dependendo do jogo, é quase impossível uma menina jogar tranquilamente, sem receber ofensas ou ser assediada pelos demais.

Sou professora de cultura e narrativas dos jogos digitais e, em minhas aulas, sempre peço para que os alunos façam testes em jogos on-line. Oriento para que criem avatares femininos e joguem para saber como é a experiência da mulher. Muitos revelam que ela muda totalmente, pois é difícil manter-se atento ao jogo em meio a tantas intervenções paralelas. As interrupções decorrem, em boa parte, de assédios, de pedidos insistentes para iniciarem conversas fora do ambiente do jogo, perseguição no jogo ou em redes sociais, e assim por diante. Já em jogos mais velozes, os insultos são ainda mais intensos: ali não é lugar para menininhas! “Vá jogar Candy Crush ou outro jogo social”.

Tudo isso ocorre porque a cultura dos jogos digitais foi se desenvolvendo direcionada para o masculino. Das personagens femininas representadas de modo hiperssexualizado aos comentários de que isso é coisa de menino, o mercado de jogos digitais iniciou uma comunicação totalmente voltada para o masculino. As cores e formas utilizadas em revistas de jogos digitais traduzem todo esse universo, especialmente a revista da Playstation que, em sua página central, carrega a imagem da “garota play”, geralmente uma menina de menos de 20 anos, com pose erótica, segurando algum item da Playstation. Imagens bem próximas às das capas da revista PlayBoy.

O resultado disso é que o potencial público feminino fica acuado, tendo que criar estratégias para ter acesso livre ao universo dos jogos digitais. Recentemente, algumas produtoras de games, como a Naughty Dog, têm se dedicado a trabalhar melhor a representação do feminino, o que já ajuda a mostrar que esse espaço também pertence às meninas. Algumas personagens -- ainda que a minoria -- já não são desenhadas com contornos exagerados, com seios e nádegas sobressaindo em roupas demasiadamente curtas ou com movimentos que remetem à pornografia. Elas são personagens com atitudes, tomam decisões e oferecem opções para que o público feminino sinta-se representado.

Desse modo, talvez possamos afirmar que a indústria dos jogos digitais errou por décadas por não se atentar devidamente ao público feminino, mas podemos perceber uma mudança significativa, ainda que insuficiente. Espero que mais produtoras percebam essa lacuna e mudem suas formas de comunicação, já que elas só têm a ganhar com isso, e que em poucos anos as “meninas” possam jogar com os avatares que bem quiserem.

Thífani Postali é doutoranda em Multimeios pela Unicamp e mestra em Comunicação e Cultura pela Uniso. É Professora da Uniso e membro dos grupos de pesquisas MidCid e Nami. Blog: www.thifanipostali.com