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Dona Maria!

26 de Julho de 2019 às 00:01

Neusa Gatto

Lá vem a dona Maria. Era só ela apontar na calçada pras vizinhas decidirem entrar pra casa. Mas, naquele dia, não teve jeito. Não era possível entrar sem parecer falta de educação. Ficaram. Júlia e Sarita colocaram no rosto os melhores sorrisos e a cumprimentaram. E, o que temiam, aconteceu: ela para e começa a falação. E, como tinha assunto. Interferir, nem pensar. Dar opinião passava longe. Sarita então olha pra sua irmã e dá um suspiro. Se voltam pra conversa unilateral, sem precisar pegar o ponto que perderam. Só acenam com a cabeça até que, cansada de falar, vai embora a balançar a sacola da feira.

E, se dona Maria falava pelos cotovelos, sua filha Clara, era a mudez em pessoa. Nem a moda a afetara. Vivia ainda dos tempos de saias rodadas, camisa branca, cabelo estilo “anos 50”. Não se expunha. O que se via de Clara eram raros momentos na porta da casa. Pra pegar correspondência. Deixar o “homem da água” entrar pra medir o registro...

Viúva há anos, dona Maria vivia exclusivamente para a filha única. Sozinhas, como sempre, naquele dia viam TV.

-- Não sei onde vamos parar, fala a mãe. A filha, de olho na TV, mal escuta. A outra continua. Fui na venda hoje e tá tudo mais caro. A minha aposentadoria não dá pra nada. Aposentadoria, se aquilo pode ser chamado assim... e... A filha se volta pra ela e, calmamente diz: mãe quero ver TV.

-- Quero ver TV. Quero ler. Quero bordar sossegada... cada hora é uma coisa. Não dá pra conversar nada com você... Fica aí muda o tempo todo.

Então, a mãe se levanta vai pra cozinha. E, começa a barulheira da lavação de louça. Tampa que cai no chão. Panela que bate em panela. Copo que escapa e se espatifa no chão.

Sozinha, resmunga... Liga o rádio. Ao fundo, um homem dá as notícias. E fala da inflação do mês. Dona Maria, com as mãos ainda ensaboadas, se vira pro aparelho. Indignada começa a gesticular. E fala. Fala com o locutor do rádio.

-- Imagina! Zero vírgula, zero, zero, zero e alguma coisa? Esbraveja ela. Vai na feira! Vai na venda. Na padaria, no açougue, no mercado... vão lá pra ver se é zero, zero, zero... Muda a estação...

Na sala, Clara muda de canal. Encontra um concerto. Gosta de música.

De repente, a mãe surge esbaforida na porta da sala. Acostumada com seus rompantes, Clara olha de relance. E, de rabo de olho, espreita. Então, se dá conta. Dona Maria cai no chão. Corre pra ajudar a mãe. Sacode. Grita como nunca havia gritado antes. Se surpreende com a emoção que sente.

No rádio, muda pra uma música movimentada. Um rock. Aumenta o volume. Dança sozinha na cozinha.

Júlia e Sarita foram ao enterro. E, depois disso, nos anos seguintes raras vezes viram Clara de novo. Se enclausura. Um ser branco, transparente, fantasmagórico na imaginação de quem ainda se lembra dela.

Neusa Gatto é jornalista e produtora de vídeos.