Do tempo em que médicos atendiam chamados
Vanessa Tenor
Se alguém cai ou passa mal, em lugar público ou na residência, carro resgate e seus socorristas virão atendê-lo. O Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) funciona 24 horas, controlado por médicos que recebem as informações e classificam as prioridades segundo protocolos estabelecidos. O doente ou acidentado será levado a um serviço de emergência. Não vão perguntar se “pagou ou não pagou o inps”, “se tem, ou não, convênio médico”, “se votou contra ou a favor do governo”. Somente depois dos procedimentos que preservam a vida e da constatação de não haver mais risco iminente, a família pode remover o acidentado ou doente para algum serviço privado.
Sou do tempo em que médicos atendiam chamados. O Pronto Socorro Municipal era precário. Havia serviço domiciliar de urgência, mas privativo dos que contribuíam à Previdência Social. Apenas uma farmácia permanecia aberta dia-e-noite com estoque limitado de remédios. Nos hospitais, nenhum esquema de plantão. Unidades de Terapia Intensiva (UTI) ainda não tinham sido inventadas ou não existiam, pelo menos aqui no Brasil. Quando alguém chamava o médico (pediatra, clínico ou cirurgião, os mais acionados), ele era obrigado a abandonar o conforto do lar e cumprir o juramento hipocrático.
Lembro-me de, em plena madrugada, ter me deslocado a bairros distantes, em ruas mal iluminadas, para atender crianças com febre, desidratadas, em convulsão e até sadias. Neste caso, por obra de pais ou avós apavorados. Nunca passei medo. Sorocaba -- à época cerca de 200 mil habitantes -- era bastante segura. Com o crescimento, a coisa mudou. Felizmente foram criados serviços de urgência/emergência tanto do Poder Público como dos Planos de Saúde.
Lembro-me do meu último chamado às desoras. Num apartamento a pouca distância do meu, família pediu atendimento a criança com febre alta. Por precaução, fui com meu carro. Voltei são e salvo para minha residência. O mesmo não aconteceu com o pai da criança. Como a farmácia 24 horas era muito perto, saiu a pé; perdeu carteira e relógio para notívago assaltante.
Desde que foram criados pronto-atendimentos confiáveis, passei a atender somente clientes que já conhecia. Era o caso daquele pai que trouxera criança loira e sua mulher também loira. Fora transferido do emprego para Sorocaba. Depois de alguns atendimentos em meu consultório, ligou-me à noite para atendimento domiciliar. Não quis me dar o endereço. Insistiu em me esperar na região central. Como já o conhecia e era antes das 22 horas, resolvi correr o risco. Na esquina, apontou-me onde morava e assegurou: -- “O doutor vai compreender porque esperei aqui fora”. Entro na residência. Desfeito o mistério da sonegação do endereço. A criança, a mulher e a sogra eram bem moreninhas. O cidadão mudara-se para cá trazendo duas famílias. A que eu atendera no consultório era adventícia.
Por falar em chamados... Em Itu, anos 50, bondoso clínico geral foi procurado por casal de sitiantes. Queriam saber quanto custaria ir até a zona rural. Segundo os costumes da época, o profissional analisou a dupla (tipo de roupa, relógio e adereços), o horário, a distância do sítio e fixou o preço do atendimento. Pegou sua maleta, pôs o casal no Studebacker e partiu para o chamado. Chegando ao destino, o homem puxou da carteira e entregou ao médico a quantia ajustada. -- Por que essa pressa? Primeiro vamos ver a criança. -- Não carece não. Ela tá boa. Acontece que nóis perdemo a úrtima jardinera, e o dotor cobra mais barato que o chofer de praça.
Si non è vero, bene trovato. Pode ser lenda urbana, mas é boa estória.
Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul - [email protected]