Buscar no Cruzeiro

Buscar

De volta às cavernas

23 de Maio de 2020 às 00:01

De volta às cavernas Crédito da foto: Divulgação

Edgard Steffen

Violência doméstica contra mulher cresce 50% durante confinamento. (Dos jornais)

Enquanto escrevo, costumo ouvir músicas. No momento, sintonizo site com velhas baladas de um de meus crooners favoritos. Dick Haymes, nascido na Argentina (1916), dividiu com Bing Crosby a fama de melhor barítono dos anos 40/50. Casou-se com a dançarina atriz Rita Hayworth, uma das mais belas mulheres de Hollywood. O casamento durou dois anos. Motivo: alcoolismo e violência doméstica. Rita explicava seus divórcios: Meus maridos dormem com Gilda e acordam comigo à experimentos de psicologia comportamental mostram que ratos brigam quando a comida é escassa. A falta de espaço por superpovoamento da gaiola gera brigas mais frequentes e mais violentas que as por escassez de comida.

Álcool, ócio e pouco espaço despertam no homem o troglodita adormecido há milênios. Abro parênteses. Olha eu, de novo, exercitando pitacos de paleoantropólogo de botequim reafirmo que não mais os frequento para tentar explicar cenas comuns em nossos dias. O troglodita buscou e encontrou nas cavernas refúgio ao abrigo das intempéries. Nelas conviveu com um “passarinho” esquisito, sem bico nem penas, que dormia de cabeça pra baixo durante o dia e só voava à noite.

Tornado hábil, quase racional e tendo aprendido a reproduzir o fogo (obtido através de algum incêndio natural) ficou mais fácil sua vida. O fogo ajudou-o a manter-se aquecido, já que perdera a farta pelagem anti-frio. A ortostasia aumentara massa e função cerebral ao dar-lhe visão mais estimuladora do que chão, relva, barro e pedras. Para sobreviver já não dependia somente do instinto e do reflexo. Ereto, o horizonte o convidava a andar para a frente e permitia-lhe avistar inimigos antes que estes se aproximassem. A descida das árvores custara-lhe perdas. O rabo e os pelos, por exemplos. A cauda por falta de uso. Útil na função preênsil, estorvo na deambulação. Possível que os pelos tenham caído de susto. Ponha susto nisso! Diante de tantos perigos e fenômenos luminíferos tonitruantes as suprarrenais despejavam mililitros de adrenalina na corrente sanguínea.

Em torno do fogo formaram-se grupos. Os machos mais fortes escolhiam sua(s) fêmea(s) e constituíam clãs. Na carência de fêmeas, os grupos se digladiavam e resolviam tudo no braço, pau e pedra. O tacape, primo ancestral da escultura, veio depois com a pedra lascada.

Enquanto os machos saíam a campo para catar sementes ou achar alguma carniça deixada pelos carnívoros, as companheiras ficavam na caverna para manter o fogo, sagrado e necessário, além de cuidar da prole. A proteção dos filhotes, a reunião em torno do fogo e do alimento podem ter resultado na protofamília. Dá pra imaginar que a mulher primeva chegou antes que o primevo adão na articulação de palavras. A consciência do amor maternal viria como aperfeiçoamento racional do amor instintivo.

O coronavírus jogou o Homo sapiens de volta às cavernas. Elas podem ser grandes com quintal e piscina ou simples cubículos compostos de quarto, sala multiúso, cozinha e banheiro. Cavernas barulhentas e iluminadas.

Antes do Covid-19 o homem podia odiar o trabalho, maldizer o baixo salário, sacolejar no transporte individual ou coletivo, mas havia a happy-hour nos botecos. Funcionavam como sangradores de frustrações. Entre um gole e outro sublimava sua agressividade xingando o time adversário ou o governo de plantão (responsável “natural” por sua desdita). Cavernícola inativo, preso à mesmice do cotidiano, escapa-lhe o status sapiens. Explode.

Em atávica revanche, quem deve estar rindo à toa é aquele bicho que dormia de cabeça pra baixo no teto das cavernas. Finalmente vingado da fumaça, fogo e dos barulhentos grunhidos do antropoide glabro que, por milênios, perturbou seu sono diurno.

O homem, graças a Pasteur, já aprendeu a conviver com o vírus da raiva. Terá que aprender a conviver com o corona mutante. Este novo micróbio rouba-lhe o emprego, obriga-o a usar máscara e, o que é pior, permanecer encarcerado sem ter cometido crime.

Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: [email protected]