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De sucos e parasitas

20 de Outubro de 2018 às 10:09

Edgard Steffen

15 de outubro é Dia do Professor

Entre minhas vaidades confesso a de ser diplomado professor primário. Talvez a profissão mais lembrada durante a luta eleitoral. A mais depressa esquecida após a posse. Conjecturava sobre isso quando li notícia sobre aumento dos casos da doença descrita por Carlos Chagas. Até agosto deste ano, 231 novos infectados, a maioria no Pará.

Há 70 anos, em pesquisa solicitada pela cadeira de Música do curso de magistério, encontrei os versos do folclore paraense: Chegou no Pará, parou. Tomou açaí, ficou. Na ocasião, minha vivência geográfica não ultrapassava os limites do Estado de São Paulo. Do açaí, eu estava pior que o Zeca Pagodinho em relação ao caviar. Nunca tinha visto nem comido nem ouvido falar.

O açaizeiro (Euterpe oleracea) é uma palmeira encontradiça na Região Amazônica. Do mesmo gênero da Euterpe edulis (juçara) da Mata Atlântica. Desta extrai-se o palmito mais saboroso. Está ameaçada de extinção pelo extrativismo predatório.

O açaizeiro é abundante na hiléia e começam a aparecer cultivares economicamente viáveis em outras regiões. Seus numerosos e pequenos frutos exibem cor roxa. Esmagados, serviam (e servem) de alimento desde os tempos pré-colombianos. No fim do século 20 o consumo do açaí, principalmente da polpa e do palmito, expandiu-se. Múltiplos usos em culinária, cosmética, farmacologia tornaram o fruto do açaizeiro popular nas regiões sudeste e centro-sul.

A manchete* “Associada ao açaí, doença de Chagas avança e dobra em sete anos no país” parece acrescentar, aos versos folclóricos, o apêndice: “ficou porque adoeceu ou morreu”.

Se você é um dos que se rendeu à moda da bebida energética ou dos sucos e sorvetes flavorizados pela frutinha roxa, não se preocupe. O produto que você consome é seguro. Fiscalizada pela Vigilância Sanitária, a polpa industrializada é submetida à pasteurização. O que não aconselho é o consumo nos quiosques de beira de estrada e borda da mata. Insetos vetores da doença descrita por Carlos Chagas, podem se esconder entre os bagos de açaí (ou das canas usadas para produzir garapa) e transmitir a tripanossomose americana.

A doença de Chagas ocorre desde o sul dos USA até o norte da Patagônia, sempre ligada à presença de triatomídios (barbeiros ou chupanças) nas matas ou nos domicílios. O Trypanosoma cruzi causador da moléstia multiplica-se no aparelho digestório do inseto. A transmissão se dá pelas fezes do vetor ou quando o inseto é esmagado no processo de moagem do açaí, cana-de-açúcar e outros sucos “in natura”.

O programa de erradicação dos barbeiros (gêneros Triatoma, Panstrongylus e Rhodnius), pelo rociamento das habitações rurais com BHC (hoje, proibido), conseguiu interromper a transmissão domiciliar da moléstia de Chagas (1970). A transmissão do tripanossomo ficou restrita às transfusões de sangue. Alguns bancos de sangue precários não realizavam exames laboratoriais (obrigatórios) nos doadores. A proibição da comercialização de sangue e derivados acabou com o problema.

A transmissão por alimentos sequer era mencionada nas aulas das faculdades de medicina, tal a raridade. Nas últimas décadas começaram a aparecer surtos, às vezes intra-familiais, da forma aguda da doença. Estavam sempre ligados à ingestão de caldo de cana ou suco de açaí.

Mal de Chagas adquirido por consumo de alimentos contaminados é mais um exemplo na dificuldade em se erradicar moléstias infectocontagiosas. Os parasitas sempre dão um jeito de permanecer, ou voltar, quando -- seja o próprio ou seus hospedeiros -- modificam comportamentos.

Não sei porque, mas a sobrevivência de parasitas levou-me a pensar na propaganda eleitoral...

(*) Estarque, M & Prado A. -- FSP -- Caderno Cotidiano -- pag. B1 -- 14/10/2018.

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço -- [email protected]