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De borrachudos e micos

15 de Setembro de 2018 às 06:18

De borrachudos e micos Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Meu nome oficial é Simulium pertinax, mas pode me chamar borrachudo que eu atendo

Indaiatuba, onde nasci e fui criado, fica numa planície. Rios e ribeirões meândricos, onde pesquei bagres e lambaris, correm lentos. Somente fui apresentado aos borrachudos em Mongaguá. Nas manhãs e fins da tarde eles atacavam e deixavam pápulas pruriginosas em nossas pernas. Voltávamos a Sorocaba cheio de marcas. Os entomólogos deram o nome Simulium pertinax a esse incômodo inseto. Simulium porque é mosquito, mas, pela cor escura e jeitão atarracado, simula pequena mosca. Pertinax pela pertinácia com que suga nosso sangue.

Hoje eles quase desapareceram no balneário preferido pelos velhos sorocabanos. Boa notícia!? Discordo. Explico. Os borrachudos somente se desenvolvem em água límpida e oxigenada pelo movimento. Daí os encontramos nas cachoeiras e cursos d’água de rápida vazão morro abaixo. A poluição dessas águas deve ter sido a causa do quase desaparecimento dos simulídeos naquela cidade turística.

Algumas espécies de borrachudos transmitem a oncocercose cegueira dos rios doença parasitária que produz tumores no subcutâneo da cabeça e ombros (fêmeas adultas) e também pode causar cegueira (larvas). No Brasil a oncocercose somente ocorre na Amazônia.

O nosso Simulium pertinax não transmite doenças. Pode trazer prejuízos econômicos. Foi o que aconteceu com importante município da Região Sul, cuja extensa área rural situa-se no contraforte da Serra do Mar. Nos inúmeros cursos d’água encachoeirados, a proliferação de borrachudos era tanta que a população começou a abandonar as terras, com sensível reflexo nos cofres municipais. A sofrida inquietação dos animais prejudicava a produção de leite e fazia o gado perder peso. Nas escolas rurais as crianças precisavam cobrir as pernas com sacos.

O professor D’Andretta atuou como consultor no combate aos incômodos mosquitos. Indicava técnicas de maior eficiência, menor custo ambiental e financeiro. Eu e o Mello fomos auxiliá-lo na finalização da consultoria*. Na prática já se podia avaliar. Quase não fomos picados. Nos bairros e cursos d’água selecionados, técnicos do município colhiam material nos córregos, Mello identificava e quantificava as larvas e pupas mortas, o professor registrava os resultados enquanto eu fotografava as atividades.

Foram poucos dias, mas de árduo trabalho. Saíamos do hotel antes do nascer do sol, íamos para a zona rural, almoçávamos em restaurantes de beira de estrada e, exaustos, voltávamos ao anoitecer.

Dr. Heitor, o chefe da Zoonoses* local, no dia da conclusão das atividades, mandou-nos um recado: vocês estão convidados ao aniversário de minha filhinha. Às 20 horas, rua tal, número tal. Argumentamos que não trouxéramos roupas adequadas. Eu insisto, foi a resposta enfática.

Sábado, quando voltamos do campo, lojas fechadas nos impediram comprar presentinho para a filhinha do Dr. Heitor. Após o banho, comemoramos a conclusão da consultoria com lauto jantar no melhor restaurante da cidade. De lá nos dirigimos à festinha de aniversário.

No bem cuidado jardim, surpresa nos esperava. Sem que fôssemos avisados, éramos convidados de honra na festa de 15 anos da que supúnhamos “menininha”. Jet set local presente. Cavalheiros em paletó e gravata, damas com a melhor toalete. Fomos alojados na mesa principal. Vestindo calça, camisa e botinas, três cansados paulistas pagaram o mico de enjoados e mal vestidos. Quase não tocamos na comida. Alegando que voltaríamos para São Paulo durante a madrugada, saímos aos primeiros acordes da valsa para a debutante e seus pares.

Nota do Autor: Dr. Carlos d’Andretta Jr. (professor de Parasitologia, especialista em simulídeos), Dr. José Alberto Sampaio Nunes de Mello (ex-entomólogo do INPA). Dr. Heitor (nome fictício). Zoonoses para facilitar o entendimento (em 1970 o nome oficial era outro).

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço - [email protected]