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De arrependimentos

06 de Junho de 2020 às 00:01

De arrependimentos Crédito da foto: Divulgação / Getty Images

Edgard Steffen

30 de Maio World No Tobacco Day

Revi shows de Sinatra durante este período de confinamento. “My way” abusou da onipresença. Frank não tinha simpatia por essa balada, mas rendeu-se ao estrondoso sucesso. Além de melodia agradável, era fácil para guardar na memória. Os fãs confundiram o intérprete com o autor. Fora dos palcos e dos microfones Sinatra parecia viver do jeito que bem entendesse. Sempre às turras com a mídia, andou esmurrando jornalistas, tinha padrinho na máfia italiana. Afinado com o conservadorismo republicano, ajudou eleger o democrata JFK. Não penetrou o simbólico Camelot da Casa Branca porque era vetado por Jakie Kennedy.

Os versos da música original francesa “Comme l’habitude” falam de casal entediado, relação em crise. Na versão para o inglês, elaborada pelo canadense Paul Anka, “como de rotina” virou “do meu jeito”, narrativa de alguém que, perto da aposentadoria (cortina final) avalia a própria trajetória e jacta-se ter vivido do jeito que bem entendeu.

Avançado em anos, se você acha ter vivido do seu jeito, é bom lembrar que sua liberdade pessoal foi limitada por crenças, valores, convenções e leis. Você esteve, está e estará condicionado ao meio, à formação recebida e a um sem número de fatores que se expressam pelo superego e amansam o id².

Como você, meu leitor(a), tive fantasias e birras de criança; como você, fui adolescente cheio de certezas; como você, sou adulto carregado em dúvidas. Ao ouvir uma das afirmações da balada “tive poucos arrependimentos, tão poucos que não merecem menção” (regrets, I’ve had a few...) conjecturo. Idoso, olho a vida pelo retrovisor sem perder de vista a estrada que vem pela frente. Muitas lembranças, algumas saudades e, poucos arrependimentos. Destes, me desconforta ter aprendido a fumar. Aprendizado fácil. Bares perto da escola vendiam cigarros a granel.

Embalado pela propaganda fumar era maduro, másculo, moda embarquei na canoa furada do tabagismo dos 16 aos 33 anos. Creio ter acendido cigarros mesmo durante consultas. Absurdo! Não era meu jeito, mas o jeito programado pela indústria tabagista.

Encarcerado em meu apartamento, quase esqueci deste Dia Sem Tabaco recomendado pela OMS. Lembrou-me a página da Saúde¹ e a manchete “Tabagismo é responsável por 90% dos casos de câncer de pulmão”.

Estamos estarrecidos e temerosos com a mortalidade pela Covid-19. Em números redondos, o novo coronavírus matou 380.000 pessoas em 150 dias (janeiro a maio); aproximadamente 2.500 pessoas/dia. Segundo a OMS, o tabagismo responde pela morte de 8 milhões de habitantes/ano (7 milhões de usuários e 1,2 milhão de fumantes passivos). Dividam 8,2 milhões por 365 e constatarão que a endemia tabagista global abate 22.465/dia. Letalidade quase dez vezes maior que a do coronavírus. Se contarmos que 80% desses óbitos ocorrem em países de baixa renda, podemos inferir que o vício desvia recursos de famílias que vivem em situação de pobreza.

Notícia boa é que as leis de combate ao tabagismo “pegaram” neste Brasil onde nem todas as leis se consolidam. Fumantes perderam o charme. Hoje parecem marginais expulsos dos coletivos, das salas de trabalho, dos bares e restaurantes. Párias sobreviventes numa sociedade cheia de outros vícios.

Notícia má é que novo modismo -- o narguilé -- parece atrair a juventude. Recente batida policial em festa proibida, em tempos de distanciamento social, apreendeu convites com os dizeres “Venha e traga seu narguilé”. É o que se pode chamar risco duplo. Quem escapar do novo coronavírus, no futuro pode ser premiado com enfisema, câncer, infarto, arteriosclerose, sem aprender que seus hábitos decidirão seu jeito de morrer.

1 Cruzeiro do Sul, 03/06/2020 pág. A11

2 Substrato instintivo da psique.

Edgard Steffen é escritor e médico pediatra. E-mail: [email protected]