Da Páscoa de Antanho
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Edgard Steffen
“Paixão de Cristo” será exibida pela TV Câmara na sexta-feira
(Cruzeiro do Sul -- 31/3/2021 pág. A1)
Para vocês terem uma ideia como sou de antanho, sou do tempo em que, na Sexta-feira Santa, o único cinema de Indaiatuba exibia exclusivamente o filme mudo “Rei dos Reis”, de Cecil B. DeMille (1927). Jesus aparecia de longe, de costa ou cercado pelos demais atores e figurantes. O rosto nunca mostrado. O Deus Encarnado não poderia ter representação física. Desde 1934, a Liga Nacional da Decência (católica) e entidades protestantes similares censuravam a cinematografia. Ditavam o que podia e o que não podia ser levado às telas. Filme vetado por elas significava boicote. Bilheteria ociosa e plateia vazia. O grande vilão era Judas Iscariotes. Como não havia o politicamente correto, competia em vilania com os judeus. Antissemitismo, expresso ou oculto, grassava no mundo ocidental. Os romanos opressores quase poupados pelo roteirista.
Na quinta-feira, caminhão com gelo e serragem trazia pescado fresco para vendê-lo nas esquinas. Aportava na pequena cidade, com sardinha fresca e peixes mais comuns. Alguns pescadores artesanais também aproveitavam a ocasião para faturar uns trocados mercadejando traíras dos açudes e lagoas. Quem não adquirisse peixe fresco, apelaria ao bacalhau salgado dos armazéns de secos e molhados. Por certo de espécie mais barata que o bacalhau do Porto.
Na sexta-feira, silêncio solene tomava conta da urbe. O evento mor acontecia após o pôr do sol. A procissão do Senhor Morto era quilométrica. Reunia gente de todos os bairros, tanto da cidade como da zona rural. Uma das atrações, alvo de acirrada disputa entre as sopranos locais, era a Verônica. Em pontos predeterminados, o cortejo parava. A banda silenciava e a diva, alçada a suporte adrede preparado, afastava o véu que lhe cobria o rosto e desfiava, a capella, o canto cuidadosamente ensaiado. O vos omnes / Qui transitis per viam, / Attendite et videte / Si est dolor similis sicut dolor meos! (Ó vós todos que transitais pela rua. Vinde e vede: Há dor semelhante à minha!) Esta era a invocação da cantora, para responso dos fiéis, enquanto exibia alvíssimo linho com traços da face do Crucificado.
O espoucar dos rojões, ao meio-dia do sábado, quebrava o silêncio. Era a Aleluia. Num ponto da praça, poste de madeira devidamente ensebado exibia o Judas na extremidade. O boneco de palha, com chapéu e terno, tinha os bolsos cheios de mil-réis e brindes angariados no comércio. Desde as 8 horas, meninos e adolescentes, em revezamento ou associação, tentavam vencer a escorregadia coluna para alcançar o pequeno tesouro. Alcançado, repartiam o butim entre tapas e empurrões. A turba assistente malhava o Judas até reduzi-lo a trapos e palha queimada.
Semana Santa não era feriadão. Filhos da terra, exilados pelo labor em centros maiores, até aproveitavam as celebrações para visitar a família. O almoço de Páscoa era servido após a missa dos católicos e a escola dominical dos protestantes. Rega-bofe caprichado. Chocolate? Nem na sobremesa. Era coisa cara. Dinheiro curto na classe média. Valorizado na dos endinheirados. Havia mais fé e ritos que ovos e coelhos de chocolate. Na escola dominical, em algumas páscoas, recebíamos saquinho de papel colorido com balas misturadas a cartões com versículos bíblicos.
Quando a televisão chegou por estas plagas, em seus primeiros anos, adequava sua programação às comemorações cristãs. Ao vivo, peças, músicas, celebrações centravam-se na crucificação, morte e ressurreição. Depois, liberou geral. Aos desatentos, apenas as notícias sobre alta/falta do pescado, ovos de chocolate de todos os tamanhos, cores, sabores, estradas entupidas de carros e notícia de acidentes indicam semana especial.
Neste 2021, até a Semana Santa está perdendo para a pandemia e para as video-cassetadas protagonizadas na Brasília dos três poderes.
Apesar dos pesares, Feliz Páscoa para todos nós!