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Da linguagem em tempos de peste

04 de Abril de 2020 às 00:01

Da linguagem em tempos de peste Crédito da foto: Divulgação

Edgard Steffen

Última flor do Lácio, inculta e bela.

És a um tempo esplendor e sepultura.

(Olavo Bilac)

Nunca usei tanto meu computador como nesses dias de confinamento obrigatório. Por ser velho (eu, não o PC) e o coronavírus novo me obrigar, tirei o time de campo.

Sou do tempo em que, nos trabalhos escolares, evitávamos escrever time, abajur, matinê, chofer, chanca e outros estrangeirismos. Tínhamos de quebrar a cabeça para achar elenco, quebra-luz, vesperal, motorista, botina para que a caneta vermelha não punisse o vício de linguagem.

Obrigavam-nos a resistir à tentação dos neologismos e das palavras aportuguesadas. Entre livros adotados para nos ensinar escrever, havia um que descrevia pai levando filho assistir a uma partida de futebol no Pacaembu. O título até hoje me causa arrepios (pra não dizer frissons ou chills on my spine). Uma partida de ludopédio. Vocês já viram título mais besta a descrever jogo de futebol?!? Começava dizendo que o automóvel e o respectivo cinesíforo vieram pegá-los no domicílio (pra não dizer bangalô).

Não bastasse o ludopédio, outras preciosidades entravam em campo. Lanches e sanduíches travestidos em códeas de pão, time transmudado em elenco, bola em esfera de couro, goleiro em arqueiro, gols em pontos para os locais ou visitantes. Se eu chamasse meu amigo e eventual chofer Menaim Miguel de cinesíforo, temo que ele perdesse a elegância e fleugma própria de seu jeito de ser. “Deixa de ser besta, ó alemão pernóstico!” Poderia não falar, mas, que pensaria, pensaria.

O futebol foi talvez a maior fonte de anglicismos no Brasil. Começava por gol aportuguesamento de goal que tanto significava o ponto marcado como o espaço defendido pelo goalkeeper. Na defesa os beques direito/esquerdo e, na linha média alfos direito/esquerdo ladeavam o centeralfo.

Na linha de frente, os pontas direita/esquerda batiam corners para o centroavante cabecear para o gol, desde que não estivesse offside. Com o tempo viraram goleiro, laterais, centrais, médios, pontas e atacantes e as jogadas escanteio, cabeceio e impedimento.

A criatividade dos narradores e comentaristas impôs neologismos muito mais bonitos que as palavras inglesas aportuguesadas e muito melhores que os cinesíforos e ludopédios da vida. Osmar Santos criou linguagem própria. Em vez de chute (shoot) “ripa na chulipa, pimba na gorduchinha”. Gorduchinha refere-se à bola enquanto ripa, pimba e chulipa significam pancadas (vide Houaiss).

Nestes dias de peste você não vai ao futebol nem aos shoppings nem dá um rolê por aí. Está confinado. Pensou em tomar vacina no drive thru, mas desistiu ao ver as filas. Em casa não larga o celular. Enjoou de miojo. Liga para o i-Food para pedir fastfood em delivery.

Fica indeciso entre hotdog ou hamburguer, com ou sem milk-shake ou Diet Coke. Paga cash no card. Usa o laptop para trabalhar em home office. De quando em vez, larga o homeworking e dá uma espiada nos e-mails, no Instagran, no WhatsApp. Tenta falar pelo Skipe.

Verifica problemas no bluetooth, mas não sabe se a causa está no harddisk do seu wirelless personal computer. Ou se a causa está no software. Talvez seu PC precise recall. Mas não adianta chamar o Uber para levá-lo aos técnicos. Estão offline em quarentena.

Não assiste aulas presenciais da faculdade, mas estuda e faz homeworks online. Para descansar, caça jogos, músicas e filmes em streaming. Mantém-se plugado na web para ficar in nas redes sociais. Toma cuidado para identificar fake news e spams.

Teme o risco de malwares e worms em seu internético espaço. Confia no antivírus e no firewall, mas desconfia que hackers possam invadir seu homebanking.

Como vocês já perceberam, continuo semianalfabeto em informática. Não tenho inteligência natural suficiente para entender a inteligência artificial. Já nem sei mais onde usar itálicos ou quando aportuguesar palavras.

Rezo para que Deus nos salve do novo coronavírus. Gramáticos e dicionaristas que tratem de salvar a Inculta e Bela! Antes que perca o esplendor e reste somente a sepultura.

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]