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Crise de livros e de ideias

12 de Dezembro de 2018 às 00:01

Crise de livros e de ideias Crédito da foto: Vanessa Tenor

Há anos tenho o hábito de andar pela avenida Paulista aos domingos. Parada obrigatória: a loja da Livraria Cultura no Conjunto Nacional. Livrarias são a minha Disney (ou minha Vegas) A alegria principal estava sempre nos livros. A secundária era ver o ambiente quase sempre cheio.

Crianças, jovens, adultos, pessoas lendo e outras tomando café, todos cercados pelo conhecimento, pelo lazer, pelos volumes físicos das prateleiras. Sempre me pareceu que escolas com sons vindos dos pátios e a algaravia de lojas de livros eram sinais de vida e de esperança.

Minha esperança diminui no ocaso de 2018. Saraiva e Cultura enfrentam drama de sobrevivência. Pediram recuperação judicial. Juntas, vendiam quase 40% dos livros consumidos no País. Aparentemente, aquela multidão no Conjunto Nacional estava ali rindo e nada comprando. Lamento pelo negócio de pessoas como as que conheço e estimo, mais ainda pelo que representa em um país como o Brasil.

Desapareceram quase todas as livrarias de bairro em São Paulo. Quando cheguei a esta cidade, havia a Belas-Artes entre o cinema de mesmo nome e a Paulista. Já fechou, como tantas outras. As sobreviventes lutam de forma épica. O meteoro da crise está eliminando os grandes dinossauros e os pequenos mamíferos.

Alguns dados parecem indicar que não estamos lendo menos do que o pouquíssimo que já líamos. Não é uma nova crise de leitores. Talvez tenha apenas mudado o modelo de negócio, o que seria um mal menor. As pessoas estariam comprando mais pela internet e baixando mais textos virtuais do que comprando livros físicos. Isso não seria tão terrível, pois ocorreu o mesmo com o desaparecimento do telégrafo sem que a comunicação humana desaparecesse. Não tenho dados para avaliar a extensão da crise das livrarias brasileiras. Apenas observo com certa ansiedade.

Há algo anterior à crise. Somos um país que lê pouco. Somos uma terra onde a elite lê quase nada. Mudando ligeiramente a frase: somos uma terra que vive lendo coisas ao celular e poucos livros. O suporte seria irrelevante, como o foi o ciclo do desaparecimento do papiro/pergaminho e a ascensão do papel. Tanto faz se alguém ler Machado de Assis com caneta nanquim, impresso em papel ou no tablet, basta que leia Machado. Será que isso ocorre? Até hoje, lançando olhares indiscretos a vizinhos na poltrona ao lado do voo ou em outros lugares, nunca vi nada que indicasse o bruxo do Cosme Velho.

Há outra questão. Existe uma cultura de gratuidade na internet. Coloco o link de um artigo na minha página. Várias pessoas reclamam: “Não consigo ler, tem de ser assinante”. O jornal mantém um exército de jornalistas, paga a revisores, sustenta correspondentes, edifica prédios e paga impostos, cria produtos a um preço alto e, ao fim da jornada de custos, entregaria o ponto final da cadeia produtiva de graça. Pergunta prática: quem pagaria o almoço, jamais gratuito? Por que pensamos sempre que a cultura e a informação devam ser gratuitas e a camiseta não?

Não entro no mérito do debate sobre financiamento de questões de interesse social. O que tem amplo sentido deveria ser gratuito? Seria a situação perfeita. Então, como fazer? Questão sempre delicada: o consumidor sempre paga, sempre, resta saber se direta ou indiretamente.

O debate é vasto. A crise das livrarias pode ser apenas de gestão e não de falta de leitores. Quero levantar outra questão. Informação tem sentido social, aprimora cidadania e é fundamental. Bem: por mais relevante que sejam cultura e informação, livros e acesso ao conhecimento, devo reconhecer que comida é ainda mais relevante. Na pirâmide das necessidades humanas, comer é anterior a ler. Por que ninguém jamais reclama de ter de pagar pela banana do supermercado e faz muxoxo de ter de pagar pelo jornal? Uma fã me disse que, se todos os livros fossem gratuitos, ela leria mais. Acho piedoso o propósito. Se o Restaurante Fasano servisse o que serve a R$ 10 por pessoa acompanhado de vinhos indicados pelo Manoel Beato por um adicional de R$ 2, eu, creio, jantaria lá todas as noites. Amo ler, todavia se fosse para uma ilha e tivesse de optar entre a Ilíada e um estoque de pão, creio que abandonaria o bom Homero no cais do porto. Sedento no Saara, você desejaria Proust? A comida jamais é gratuita.

O livro e o jornal deveriam sê-lo? Alguém já protestou em suas redes que o bar cobre pela cerveja? Já fizeram protesto pelo absurdo de existir valor até por uma garrafinha de água? O essencial tem custo. Tudo tem custo. Por que apenas o custo da informação é contestado? Alguém poderia argumentar que seria papel do Estado fornecer cultura e informação de forma coletiva e gratuita. Sabemos, por dolorosa experiência tupiniquim, que a gratuidade oferecida pelo Estado é a mais onerosa e de maior risco de controle de informação.

Não sei se existe uma boa solução para questões tão amplas. Há poucos leitores, o modelo de negócio dos livros passa por crise estrutural, tudo tem um custo e há menos gente querendo incorporar o custo como investimento, já que boa leitura nunca é gasto.

O mundo está menor, mais ágrafo e mais escuro. Quer colaborar? Que tal dar livros de presente agora? Ir a livrarias virou gesto de resistência. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul