Código
Duas pessoas que não se conhecem, obrigadas a passar algum tempo juntas (motorista de táxi e passageiro, viajantes sentados lado a lado em avião, ônibus ou trem ou de pé num elevador, qualquer coisa assim) -- sobre o que conversam? O tempo.
-- Quente, né?
-- Este verão promete...
-- Mas acho que vai chover.
-- Tá com cara...
O tempo é um assunto seguro. De todas as coisas que as duas pessoas têm indiscutivelmente em comum (ambas são bípedes mamíferos, falam a mesma língua, estão ali com um destino ou um objetivo igual e são contemporâneas) o fato de estarem experimentando as mesmas condições climáticas é a mais indiscutível de todas. Falar sobre futebol é arriscado. Política, nem pensar. Resta o tempo.
Outro assunto comum a toda a espécie, que só não inaugura todas as conversas porque também é o seu principal terror, é a morte.
Talvez, quando falamos do tempo, estejamos falando sobre a morte, em código.
-- Quente, né? (Você sabe que nós vamos morrer, não sabe?).
-- Este verão promete. (Sei. Todos sabem).
-- Mas acho que vai chover. (O jeito é viver como se não soubéssemos. Você concorda?)
-- Tá com cara... (Pode ser).
-- Ontem deu uma refrescadinha. (Seria impossível levar uma vida normal se não conseguíssemos conviver com nossa mortalidade, e acomodá-la, como uma hérnia inoperável).
-- É verdade. Pelo fim da tarde. (É, você talvez tenha razão, mas...).
-- Se chover hoje, talvez refresque de novo. (Temos é que negociar com a morte o tempo todo, como se negocia um armistício. Reconhecendo a sua vitória e o seu domínio, mas exigindo tratamento digno, como é o direito de todo condenado).
-- Geralmente é assim. (Mas não se pode racionalizar com a morte. A morte está além de qualquer racionalização).
-- Eu não aguento esse calor. (É tão impossível ignorar a morte quanto é impossível ignorar nosso próprio corpo. É o nosso corpo que nos mata. Matá-lo primeiro, suicidando-se, francamente, me parece uma forma de colaboracionismo).
Mas há quem diga que toda conversa, no fundo, é sobre sexo. Outro assunto universal.
-- Quente, né? (Topas?)
</REF>Luis Fernando Verissimo é jornalista da Agência O Globo e escreve para o Cruzeiro do Sul.