Buscar no Cruzeiro

Buscar

Censurando livros não lidos

26 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Censurando livros não lidos Crédito da foto: Adival B. Pinto / Arquivo JCS (28/6/2013)

Leandro Karnal

Conta velho documento russo que um obscuro administrador da uma região periférica do império desejava agradar ao czar Alexandre III. A região tinha problemas enormes de devastação de florestas, doenças crônicas, baixo nível da educação e ínfimos salários de professores. Em vez de elaborar respostas para tais questões, o governador obscuro da região ignota decidiu que proibiria os contos do grande e popular Nikolai Gogol.

Motivos para barrar um autor já falecido e consagrado? Não faltavam. Era aclamado como russo, porém seu nascimento ocorrera em terras ucranianas, algo suficiente e suspeito. Depois: não era um defensor da Igreja Ortodoxa ou da autoridade do czar. Seus textos eram de um realismo cru e os temas quase nunca muito elevados.

O conto O Capote, por exemplo, era quase banal ao tornar um humilde funcionário alvo de literatura. O pior de tudo? Nosso governador, membro do exército cossaco, soube que a obra O Inspetor Geral era, claramente, voltada contra autoridades, logo, contra ele!

Tudo isso foi informado ao militar-governador pois, para ser bem sincero, o próprio político jamais lera qualquer obra de literatura, como se depreendia do seu baixo domínio da gramática russa. Como ele poderia odiar e proibir se jamais lera? Fácil, seu adjunto especial para escolas imperiais elaborara uma lista que proibia Gogol e muitos outros autores.

O secretário lera ou era um especialista? Ainda menos. Estava lá por fidelidade partidária e por ser homem de confiança da elite do Cáucaso. Quase ágrafo como seu chefe, o burocrata tinha sido informado por um especialista encarregado de expurgar as bibliotecas russas das influências nefastas.

O secretário, que nada lia e era de uma burrice ebúrnea, informou ao governador, que também desconhecia a complexidade dos fluxos literários, e ambos, dotados de furor e relatórios de terceiros que teriam observado as obras detidamente, publicaram um decreto oficial e imperativo: as escolas só deveriam ler obras previamente aprovadas pelo comitê dos bons costumes do Cáucaso superior.

A ideia dos iletrados era agradar e parecerem pessoas de bem. O nível da confusão começou a crescer. Em festa de inauguração de uma nova ponte que homenageava o príncipe Nicolau, um jornalista francês perguntou ao governador o que ele achava de ruim na obra de Gogol. Silêncio constrangedor.

O governador jamais abrira um livro do autor proibido. O irritante jornalista insistiu: qual o problema do texto O Capote? Para escapar da impertinência, o político falou das modas estrangeiras de roupas e que o estrangeirismo era inadmissível em um país de bons costumes eslavos.

Para sair do encontro desagradável, o governador indicou seu secretário de educação, que, mais imaginativo, falou da perniciosa influência do Ocidente nos capotes russos. Como dois enforcados que se enredam em cordas cada vez mais extensas, cada nova frase trazia ao mundo (o jornal deu manchete para o episódio) o completo desconhecimento daquelas autoridades provincianas. A assinatura da proibição ostentava, em bom e claro cirílico, o nome de ambos.

O conhecimento do que estavam proibindo era um mistério. A oposição local aproveitou para fazer uma peça satírica chamada O Casaco e ilustrava um governador de ficção como crítico literário. Foi um sucesso estrondoso. A censura czarista nada podia fazer porque nenhum nome era identificado e nenhum valor cristão ou a família Romanov eram alvo de ataques.

Apenas um governador iletrado e seu assistente. Dizem que o próprio Alexandre III leu e gostou do texto em São Petersburgo. A censura tinha popularizado Gogol, que recebia novas edições no império. O caso dos confins do império virara fenômeno nacional.

Um dia, afastados ambos do cargo, e, por motivos de corrupção, enviados à distante Sibéria, os dois lamentavam todo o ocorrido. Em noite geladas, com o vento fustigando seus surrados capotes, um olhava para o outro e comentava, entre arrependimento e dor: “A gente poderia, ao menos, ter lido um conto desse cara”. Porém, ambos já não se lembravam do nome censurado e o presídio não dispunha de biblioteca.

O império seguiu mais alguns anos solapado pelas suas contradições estruturais e pelos seus burocratas ignorantes. Quando os dois nomes bizarros já tinham sido esquecidos por todos, o vento bolchevique varreu a vastidão daquele mundo e, lutando contra a opressão da nobreza, dos proprietários de terras e de burocratas ignorantes, levou ao poder um novo Estado, com novos burocratas, igualmente censores e que desconfiavam de Gogol por não louvar Lenin.

O tempo varreu as ditaduras monárquicas e soviéticas para baixo do tapete da história, matou czares e derrubou a Nomenklatura e, ainda brilhando no horizonte, o nome genial de Nikolai Gogol continua reluzindo para todos aqueles que, em lugar de seguirem censores imbecis, decidem beber da boa e clássica literatura. Ler é para quem não tem medo. É preciso ler muito para ter alguma esperança de que, um dia, o bom povo russo seja governado por gente alfabetizada. A história é eslava. Nunca a imaginem em climas mais quentes.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.