Buscar no Cruzeiro

Buscar

Cemitérios pós-pandemia

05 de Setembro de 2020 às 00:01

Francisco Carlos da Silva

Aproveitando a estabilização da causa-mortis proveniente do N-Covid 19, tentarei, com base em conhecimentos adquiridos em pesquisas, analisar alguns tópicos sobre as questões ambientais envolvidas em todo o processo pós-sepultamento.

O termo cemitério é proveniente do grego koimetériun (dormitório), local onde enterram e guardam os mortos. No Brasil, as práticas funerárias comumente utilizadas são a inumação, que consiste no sepultamento das urnas mortuárias diretamente no solo, ou a tumulação, onde as urnas são guardadas no interior de túmulos feitos de alvenaria (jazigos).

Quanto aos fenômenos de transformação, o corpo sem vida, em condições normais, passa por quatro processos distintos: 1) período de coloração (18-22h), quando ocorre a destruição das células em função da ação dos microrganismos e caracterizado pela formação manchas verdes no abdômen; 2) período gasoso (mínimo de três semanas), quando são gerados os principais gases funerários; 3) período coliquativo (até oito meses), caracterizado pela decomposição do cadáver (formando um líquido conhecido como necrochorume) -- uma pessoa adulta de 70 kg possibilita a geração e posterior introdução no solo de até 40 litros de necrochorume -- e 4) período de esqueletização (meses a anos), no qual o residual de matéria inorgânica dos ossos costuma liberar compostos à base de fósforo.

O processo putrefativo é o mais importante na decomposição dos corpos, mas, para que ocorra de maneira rápida e segura, necessitamos que quatro pilares estejam em consonância: temperatura, umidade relativa, aeração e tipo de solo.

Caso essas condições não estejam em equilíbrio, os corpos sofrem processos conservativos como mumificação, que ocorre em função de clima quente, temperatura muito variável e baixa umidade relativa, ou a saponificação, onde o cadáver adquire um aspecto ceroso, que ocorre normalmente em ambientes alagadiços ou pantanosos.

Segundo pesquisas de campo e laboratório realizadas em dois cemitérios do município de São Paulo e outra no município Santos (https://iwaponline.com/wst/article-abstract/24/11/97/24106), foi constatada a contaminação dos lençóis de água subterrânea vizinhos por microrganismos patogênicos como bactérias (coliformes totais, coliformes fecais, estreptococos fecais, clostrídios sulfito redutores e outros) e vírus (adenovírus e vírus pertencentes ao gênero Enterovirus) -- carreados originalmente pelo necrochorume. Dependendo da profundidade do sepultamento, esse líquido poderá ter três destinos diferentes: aflorar, ficar retido no solo ou infiltrar para a água subterrânea, causando sua contaminação. O necrochorume também é rico em sais minerais, substâncias orgânicas e metais potencialmente tóxicos, que podem manter-se no solo, servindo posteriormente de “nutrientes” para os vegetais, ou podem levar juntamente os vírus e bactérias para o aquífero.

Nos últimos meses houve um aumento significativo de sepultamentos em determinados cemitérios e nas condições que foram executados podem ocasionar vários problemas a médio e longo prazo. Como exemplificação, podemos citar o que está ocorrendo na cidade de Sorocaba, onde os corpos diagnosticados como causa da morte o Covid-19 foram e estão sendo sepultados em urnas lacradas e também são acondicionados em dois sacos funerários com suas entradas invertidas com o intuito de dificultar a saída de vírus patogênicos. Mesmo que ecologicamente correto, para evitar a infiltração do necrochorume, atrasam a decomposição natural, pois o cadáver não tem aeração necessária para a proliferação dos microrganismos decompositores.

Francisco Carlos da Silva ([email protected]) é químico e professor das Secretarias Estadual e Municipal da Educação de São Paulo, mestre em Análise Geoambiental pela Universidade de Guarulhos e doutor em Ciências Ambientais pela Unesp-Sorocaba.