Celebrar?
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Leandro Karnal
A data de hoje é simbólica e real. Real porque celebra uma luta milenar, que se acentuou no último século e meio, por direitos. Quais? Desde o direito à vida, ao corpo, ao mesmo salário, à formação, à educação de qualidade, etc. Simbólica porque essa luta não ocorre apenas hoje, mas todos os dias. Hoje serve apenas para se dar destaque ao óbvio.
Por que surgiu o dia 8 de março? Porque, há 103 anos, um grupo de mulheres esfaimadas e preocupadas com a situação do país e de suas famílias tomou as ruas de São Petersburgo. No caminho, insuflaram operários e soldados a juntar-se a elas. As greves que se iniciaram naquele dia, que pediam “Paz e Pão” (a saída russa da Grande Guerra e por comida), derrubariam o czar em apenas quatro dias. Era fevereiro no mês do calendário russo, março no resto do mundo ocidental. A data foi oficializada pela Rússia soviética, que apagou as mulheres de sua história estatal.
Não foi a primeira vez em que mulheres protestaram por direitos. Dos EUA, com Seneca Falls, até as sufragistas europeias, das vozes no deserto como as de Nísia Floresta Augusta aos caudalosos movimentos por educação e abolição da escravidão, as mulheres se organizaram por direitos desde o início do século 19.
Definidas como “sexo frágil”, de serem menos do que os homens por causa de sua compleição física e intelectual, de que eram talhadas para papéis domésticos apenas, as mulheres de elite sofriam confinadas em casa. As pobres desfaziam-se em trabalhos braçais em indústrias, nas casas de patrões que as remuneravam mal (isso quando não eram, por conta da cor da pele, escravas). A cruel ironia foi percebida por Sojourner Truth. A ex-escrava estava em um congresso feminino em 1851, ao qual fora convidada para ser espectadora. As mesmas mulheres brancas que lutavam por direitos para si não se lembraram de deixar uma negra falar. O local foi invadido por homens brancos que tomaram a palavra e vociferavam que o lugar das mulheres não era a arena pública, pois eram frágeis para isso. Que Deus as tinha feito para o lar. Sojourner se levantou, silenciou os invasores e disparou: onde estavam os senhores, quando eu carreguei sacos em carroças? E não sou eu uma mulher? Onde estavam os que acham que as mulheres são frágeis, quando eu tive todos os meus filhos e vi alguns serem tirados de mim à força? E não sou eu uma mulher?
Diante disso, os homens se retiraram e as brancas entenderam, naquele momento ao menos, que a abolição da escravidão era uma luta semelhante à luta por direitos das mulheres. Algumas podem ter entendido que havia um feminismo com reivindicações brancas e um feminismo com demandas negras.
Tanto tempo depois e muito já melhorou, claro. Há voto, há igualdade jurídica, há liberdade... no papel. O mais comum é ler mensagens pedindo um dia internacional do homem. E como seria esse dia? Celebraríamos a aflição de ter que agonizar na poltrona com o celular nas mãos ou a TV em nossa frente? Comemoraríamos como somos trabalhadores incansáveis no emprego e indolentes incontestes em nosso lar? Entoaríamos hinos à amizade masculina, fortalecida no estádio e no bar, nas rodinhas de conversa, nos comentários sexuais? Bradaríamos contra as patroas que querem cercear nossa liberdade de agir como adolescentes eternos, evitando pensar se falta algo na geladeira ou que remédio nossos filhos tomam? Deve mesmo ser um dia interessante!
Há os machistas inadvertidos, que, hoje, cozinharão para as esposas, mas farão tanta bagunça na cozinha que seria melhor não terem ali entrado. Alguém que limpe! Um amigo me confidenciou que, quando morou na Itália, os homens cozinhavam e lavavam nesse dia, dando folga às mulheres. Nesse dia. Que sociedade avançada! Boa semana para homens e para mulheres!
Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.