Bom de briga
Crédito da foto: Acervo Pessoal
Edgard Steffen
Antigamente, a escola era risonha e franca. Do velho professor as cãs, a barba branca, Infundiam respeito, impunham simpatia...
(Acacio Antunes -- O estudante alsaciano)
Risonha e franca... pero no mucho. Pelo menos nos anos 30. A falta de professores era dura realidade. Para que alunos não perdessem o ano, frequentemente os diretores escolares valiam-se de professores(as) leigos(as). Foi o que aconteceu com o famoso 3º Ano do Grupo Escolar Randolpho Moreira Fernandes (Indaiatuba, SP -- 1939). A jovem normalista, nomeada para a classe, não suportou a indisciplina. Pediu remoção. Nove sucessoras leigas tentaram cumprir o programa. Desistiam logo. O jeito foi reprovar a turma toda.
Em minha turma do 4º ano (1941), meninos com 10 ou 11 anos estudavam ao lado de outros que faziam a barba antes de ir para a escola.
Eu (nascido em 1931) e Toninho (1929) estávamos entre os mais novos. A reprova em massa nos tornou colegas de classe. Éramos parceiros nas brincadeiras, nos jogos de bafo, na coleção de figurinhas, recortes da Gazeta Esportiva, das matinês com faroestes e fitas em série -- aquelas em que o mocinho ou/e a mocinha corre grande perigo na cena final.
O novo professor não ostentava cãs nem barba branca. Era jovem normalista em início de carreira. Na certa, sabia do histórico rebelde de parte da turma. Quando percebeu que eu e Toninho fizemos o clássico gesto -- punho cerrado encostado no queixo -- “te pego lá fora”, não teve dúvida. Mandou-nos para a frente da sala.
-- Querem brigar? Pois, briguem! Obrigou-nos trocar um sopapo de mão fechada, direto na cara. Pegos de surpresa, obedecemos antes de voltar para nossas carteiras, desenxabidos e humilhados. Afinal nossas ameaças eram de mentirinha. Serviram para mostrar quem mandava no pedaço. A partir do exemplo, o professor Arnaldo Rossi pôde trabalhar sossegado.
Em vez de ginástica, montou um time de futebol. Priorizava os craques mas, cláusula pétrea, só entrava no time quem tivesse cumprido as obrigações escolares, mormente na frequência e nas lições de casa. Amansou a turma. Produziu craques que fizeram carreira no futebol profissional. Na foto da formatura não faltou ninguém. Toninho e eu aparecemos sentados, lado a lado, na fila dos pequenos. Voltaríamos a conviver na adolescência.
Acabo de voltar de Indaiatuba onde fui prestar minha homenagem ao grande amigo de infância e mocidade. Órfão de pai, foi criado pelo avô e tios. Começou a vida empurrando carrocinha para entrega de compras e servindo os fregueses num armazém de secos e molhados. De lá, passou a office-boy no Banco Mercantil de São Paulo. Sua ascensão na carreira bancária foi marcada por conduta exemplar, dedicação plena. Tornou-se gerente regional e gerente inspetor, homem de confiança dos donos do Mercapaulo. Aposentou-se após 37 anos de trabalho ininterrupto.
Não ficou sentado na praça lamentando os erros da pós-modernidade nem se imbecilizou encadeado pela televisão. Continuou a trabalhar e cumprir missão de cidadão apaixonado por sua terra e sua gente. Presidiu o Indaiatuba Clube. Rotariano destacado, estimulou o Rotaract e o intercâmbio de jovens. Assumiu os negócios de seu falecido sogro (Metalúrgica Puriar). Foi sócio de concessionária de automóveis. Investiu na Rádio e Televisão local (Rádio Jornal). Presidente e fundador da Fundação Pró-Memória de Indaiatuba, recuperou monumentos esquecidos no depósito da Prefeitura, produziu livros e vídeos sobre temas relevantes da história local.
Um de seus trabalhos foi valorizar e promover o Hino Oficial de Indaiatuba*. Todo indaiatubano sabe cantá-lo. Nesta 5ª feira parecia “sorrir o claro infinito da terra querida e venturosa/ santo ninho de amor claro e gentil” para receber um cidadão bom de briga para as coisas do “mais lindo recanto do Brasil”.
Antônio Reginaldo Geiss
23/11/1929 -- 11/09/2019
Requiescat in pace
(*) Música de Nabor Pires de Camargo e letras de Acrísio de Camargo
Fonte: Silva, Eliana Belo -- A História de Indaiatuba na perspectiva biográfica de Antônio Reginaldo Geiss -- Gráfica e Editora Vitória, 2018
Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]