As time goes by
Crédito da foto: Peter Steffen / DPA / AFP
Leandro Karnal
Em setembro de 2019, espante-se querida leitora e caro leitor, o atentado contra as torres gêmeas de Nova York e contra o Pentágono tornou-se um fato de 18 anos. A sensação de que tudo se acelera é forte e justa.
O tempo devora tudo. Outro 11 de setembro completou 46 anos: a derrubada do presidente Salvador Allende, no Chile. No mês de julho revelei, por ocasião dos 50 anos da chegada do homem à Lua, que eu tinha assistido pela televisão, ao vivo, ao episódio histórico. Alguns jovens alunos supuseram que eu mentia e cometia o dislate típico de idosos: invenção de memórias.
Em 1972, vivi, com alegria, o Sesquicentenário da Independência do Brasil. Lembro-me com clareza do hino ensaiado na escola: “Marco extraordinário, sesquicentenário da Independência, potência de amor e paz, esse Brasil faz coisas que ninguém imagina que faz!”. Depois, com outra emoção patriótica, ignorando tudo o que ocorria nos porões do poder, assisti ao filme “Independência ou morte!” E, juntamente com todo o público, bati palmas quando Tarcísio Meira rompeu nossos laços políticos com Portugal. As time goes by: eu, testemunha dos 150 anos do Grito do Ipiranga, provavelmente, estarei aqui para ver o bicentenário da Independência, em 2022.
Sempre olhei com admiração para o testemunho histórico dos mais velhos. Minha mãe recordava o dia do suicídio de Vargas, em agosto de 1954. Os alunos foram dispensados das aulas, misturando o luto com relativa euforia, segundo ela. Minha amiga Valderez apertou a mão do presidente Kennedy como parte do programa AFS de intercâmbio de estudantes nos EUA e descreveu-me a impressão viva daquele 22 de novembro de 1963, quando foi noticiada a morte do único presidente norte-americano que ela conhecera pessoalmente. Meu pai, político na época, participou de um comício de Jânio Quadros em 1960 e recebeu o broche com o símbolo da campanha: uma “vassourinha”.
Eu era um jovem estudante quando estreou o primeiro filme de “Guerra nas estrelas”. Voltei fascinado do cinema. Hoje, tantos filmes vistos da saga, nunca consigo saber o que aconteceu antes ou depois daquele episódio. Ouvi, emocionado, a notícia da morte de Elis Regina. Em 1989, vi o Muro de Berlim caindo, encerrando a Guerra Fria no mundo todo, menos nas redes sociais brasileiras.
Há dois ou três anos, trabalhando o conceito de memória na Unicamp, perguntei aos alunos qual o governante que eles lembravam pessoalmente e não por livros. A maioria disse: Lula. Fiquei estupefato, porém, para alguém com 18 anos, a primeira memória biográfica foi o decênio PT. Suponho que, em breve, isso será a memória de Bolsonaro. FHC já é passado remoto para quem tem menos de 25 anos. Para um jovem adolescente de agora, Luís XIV ou Emílio Garrastazu Médici são fatos do mesmo passado pré-histórico.
Não se trata mais de repetir surrados refrões sobre nosso envelhecimento aparente. O próprio registro de memória foi transformado. Mensagens desaparecem rapidamente e quase todo mundo usa alguma forma de stories, um recurso de duração entre um nascer e um cair do sol. Depois, nossa story será apagada por uma nova memória. Não se trata, igualmente, do palimpsesto descrito por Mário de Andrade, a sobreposição de muitas narrativas como um pergaminho que vai sendo raspado. Estamos diante de uma nova memória que apaga a anterior, ou torna a predecessora irrelevante. Para um historiador profissional existe um campo perigoso e fascinante sobre a memória e uma chance enorme de manipulações do passado.
Se formos otimistas, pode ser o dealbar de uma geração com menos traumas, menos peso do que ocorreu, inteiramente voltada a um presente contínuo que se apaga, automaticamente, na próxima curva. Não há mais cartas célebres, fotos de muitos anos: tudo são mensagens autolimpantes. Como um novo Adão, a consciência surge sem uma infância, sem pai e mãe, despertando no paraíso dado ou perdido a cada like, agora não mais visível. É um paraíso com porta giratória para o qual se volta quando amado e se é expulso quando atacado. O anjo de espada flamejante só contabiliza seguidores. Pior: a única maneira de resgatar o passado é dar um “google”. Se o sistema de busca identificar algo, ocorreu. Se nada aparecer, está findo o debate. Heródoto foi soterrado, emerge o algoritmo. Continua sempre a subjetividade, como em todo processo de memória. Hoje, porém, sendo realista, cresceu muito o poder de controle de um grupo muito pequeno sobre muitas informações. Nunca foi tão fácil criar fatos e passado. Seriam os hackers os novos historiadores? É preciso ter memória, e alguma esperança.
Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.