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As perguntas finais

12 de Abril de 2020 às 00:01

As perguntas finais Crédito da foto: Andreas Solaro / AFP (6/4/2020)

Leandro Karnal

Em 11 de abril de 1963, o papa João XXIII (desde 2014: São João XXIII) lançou a encíclica Paz na Terra (Pacem in Terris). Faltavam menos de dois meses para o “bom papa” sair deste mundo. Dois anos antes, o simpático ex-patriarca de Veneza tinha renovado e reafirmado a doutrina social da Igreja com o texto Mãe e Mestra (Mater et Magistra), documento que retomava e ampliava tudo o que os bispos de Roma tinham pensado desde Leão XIII.

A marca do pensamento católico oficial era condenação tanto da exploração do trabalhador como das propostas socialistas. A Igreja, oficialmente, condenava a ambição avarenta de alguns que concentravam bens sem pensar na caridade e, igualmente, recriminava a luta violenta ou a força como instrumento de justiça social. Tem certo impacto ler os documentos eclesiásticos em época polarizada e de revitalização da Guerra Fria nos trópicos.

São João XXIII, na já citada Pacem in Terris, defende a liberdade dos imigrantes e diz, da cátedra de São Pedro: “Por ser alguém cidadão de um determinado país, não se lhe tolhe o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade mundial, que consiste na união de todos os seres humanos entre si”.

O documento do papa João cita como fundamento para tal ideia seu antecessor, o conservador Pio XII, que na mensagem radiofônica de 1952 lembrou o direito do imigrante e da necessidade de fornecer segurança jurídica a quem se desloca de um país para outro. Alguém acusaria o Venerável Pio XII de ser simpatizante das esquerdas? O item 107 da encíclica sobre a paz diz: “Aprovamos, pois, e louvamos publicamente, nesta oportunidade, todas aquelas iniciativas que, sob o impulso da solidariedade fraterna e da caridade cristã, se empenham em lenir a dor de quem se vê constrangido a arrancar-se de seu torrão natal em demanda de outras terras”.

Reler os trechos oficiais do papado de Leão XIII até o atual papa Francisco é um exercício interessante. Quase tudo está disponível no site vatican.va, em várias línguas. Na parte inferior do site, estão os textos fundamentais, o catecismo oficial e muitos outros documentos para pensar questões como justiça social, imigração e direitos de minorias.

Em virtude de uma pesquisa que estou realizando, reli quase todas as encíclicas sociais católicas. Imaginei se um papa como Pio XI ou Pio XII tivesse uma rede social e colocasse algumas frases sobre direitos humanos, direitos dos encarcerados ou o escândalo da miséria nas ruas de cidades ricas. Que reações causariam esses pontífices no atual panorama brasileiro? Imagino que alguns gritariam: “Tem pena de bandido na cadeia? Leva para a Basílica de São Pedro!”. “Vai para Cuba, Pio XII!”

Talvez seja o mais dramático de tudo: a ideia da dignidade humana, presente nos evangelhos, defendida pelos filósofos e amparada por papas superconservadores como os citados por último hoje, para alguns, só pode ser defesa de algum partido de esquerda. A encíclica Pacem in Terris é dirigida aos prelados católicos e ao povo cristão, porém, de forma muito inovadora, a “todas as pessoas de boa vontade, a paz de todos os povos, na base da verdade, justiça, caridade e liberdade”. É um lindo endereçamento e ainda válido.

Em muitos momentos, o texto papal sobre a paz cita pessoas abnegadas que lutam pela concórdia e pela solidariedade no mundo. Conheci várias aqui em São Paulo, de organizações de acolhimento a imigrantes a voluntários para serviços com moradores de rua. Talvez sejam pessoas que não passam horas por dia derramando ódio em redes sociais e expressando suas dores pelo teclado. Há quem faça o bem e existem os que repassam mensagens hostis como meta de veneno diário.

Eu, que não sou religioso e não compartilho da crença em um Juízo Final, sempre penso nas perguntas do último julgador apresentadas em Mateus 25. Lá, segundo o testemunho que não é de esquerda ou de direita, que não é conservador ou revolucionário, o próprio Jesus afirma que somente serão avaliadas as pessoas por ações concretas ligadas à solidariedade humana. Será salvo quem se ocupou de presos e de doentes e não quem berrou o dia inteiro sua opinião. O Céu está reservado para os que pensaram nos outros, na caridade, na ação solidária.

O Paraíso existe para consagrar a harmonia de quem passou por cima de seus limites e atendeu quem tinha menos. Essa é a doutrina social da Igreja e, acima de tudo, a palavra direta de Jesus ao descrever como todas as vaidades humanas cairão por terra no dia derradeiro. Para ser mais específico, só serão perguntadas suas ações sobre dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, dar roupa a quem tem necessidade, amparar doentes/encarcerados e atender estrangeiros. Só isso. Nada mais. Nenhuma posição teórica. Nenhum debate sobre imagens de santos, dízimo, socialismo ou Estado Mínimo. Só e exclusivamente a caridade fruto da compaixão.

Na hora derradeira, no momento final, no dia em que todos tremerão, apenas os seis critérios enumerados um a um: fome/sede/roupa/doença/prisão/estrangeiros. Bem... estamos na Páscoa, você ainda não morreu e o Juízo Final ainda não começou. Boa semana.

Leandro Karnal e historiador e articulista da Agência Estado.