Só hoje
Crédito da foto: Bruno Cecim / Arquivo JCS (13/2/2009)
Leandro Karnal
E se hoje, apenas hoje, exclusivamente no momento em que começou a ler esta coluna, começasse uma fase completamente diferente da sua vida, um instante a partir do qual você recusaria convites que nada acrescentam, com pessoas que dizem sempre a mesma coisa, indo aos mesmos lugares e fotografando sem parar tudo porque nada acontece de verdade? Se apenas no glorioso dia em curso você se assumisse sem culpa, cedendo ao inesperado, sem ser o que o mundo desenha para sua pessoa há anos? Se exclusivamente agora fizesse algo que adia sempre?
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Apenas no rico e atual instante tudo ocorresse sem ser por um roteiro alheio que você incorporou como o educado, o correto, o adequado, aquilo que lhe faz amada ou amado? E se conseguisse dizer que o valor “chave” para ser querido tornou você um ser apenas previsível, domesticável, adestrável, limpa ou limpo, palatável para padrões que você nem imagina se são seus ou não porque jamais foram questionados.
No lindo dia adiante, existe a primeira e espetacular chance de pensar se o rumo está correto, se sua função profissional trouxe o que esperava, se suas relações afetivas funcionam e se a maneira de você utilizar seu tempo faz crer em vida e não em ampulheta automática que está se esgotando?
Um dia, como pensou Thoreau, para ir ao “tutano das coisas”, para saber que vale a pena o resto da sua biografia, uma ocasião para não prestar contas, evitar fórmulas desgastadas e essa data para deixar de ser fora de si. Só exclusivamente hoje, como imaginam os sábios métodos dos Alcoólicos Anônimos, só pela jornada até a meia-noite você acordasse em outra versão de si próprio, incorporando o que nunca conseguiu expressar, vivendo, intensamente, aproveitando, apenas?
E se, finalmente, entendesse agora que não pode mudar o mundo de acordo com sua vontade, que cada um segue seu caminho e seu ritmo e que quando concordam ou discordam de você nada disso tem relação com suas atitudes ou conselhos. Se apenas agora você imaginasse o mundo como algo dado e que não será redimido com sua pressa, com sua impaciência, com sua raiva ou com sua boa intenção? E se somente agora você decidisse por um lema para deixar as coisas seguirem, que vai do “che sera sera” a “hakuna matata”, de “deixa a vida me levar, vida leva eu” ao mais sábio de todos os lemas, o mais grandiloquente, o mais retumbante por todos os séculos: o silêncio?
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E se hoje a insanidade alheia não o incomodasse, se o cara que buzina parecesse um ser que precisa transferir raiva de uma vida humilhante para o trânsito, se os grunhidos dos transeuntes fossem sons de pessoas solitárias, fingindo ocupação em seus celulares? E se apenas no instante em curso você entendesse que nada existe a ser feito por aqueles que precisam ainda trilhar muito e que você não é mais ou menos do que eles, apenas não possui a chave para a descoberta alheia? Que dia seria este?
Finalmente, se toda a gritaria ao seu redor cessasse e você ouvisse sua voz, aquela apagada, profunda, estranha pela raridade, a que responde por você e não pelo filho que sua mãe esperava, pela esposa que seu marido pede ou pelo pai que a propaganda insiste que você seja? E se hoje você atendesse pessoas no consultório, desse aulas na escola, dirigisse seu táxi, varresse calçadas ou administrasse empresas pensando que o máximo da sua capacidade é insuficiente para muitos, mas suficiente para você.
Se as horas que restam do dia em curso fossem usadas para fazer algo significativo e adiado há tempo sob vários pretextos? Se aquela vida nova não fosse postergada mais, porém, subitamente, começasse agora. Se os sonhos não fossem mais empurrados e se a vida imaginada desse seu primeiro passo após essas poucas linhas?
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E se agora fosse o momento certo de parar de escrever melhor o roteiro da sua vida e começasse a frase do diretor: ação! E agora, você chutaria a bola em direção ao gol, parando de pensar na velocidade do vento, no olhar hostil do goleiro e na vastidão da trave? Se fosse o momento de fazer e a estratégia tivesse como novo nome o aqui e agora?
Que dia glorioso seria! Não a jornada de fogos de artifício e de elogios, de aprovação geral com suas boas ações. Não! Seria exatamente o oposto: o mundo no qual você não mais esperaria espetáculos pirotécnicos ou aplausos. Em que errar seria verbo positivo, necessário, sinônimo de vaguear. Sua vida deixaria de ser um show de domingo em caça de ibope e os atos seguiriam sua consciência tranquila. Que dia! Que jornada gloriosa e inovadora! Que espaço revolucionário de horas estaria aberto diante de sua vida!
Entretanto, como você não tem mais 11 anos de idade, sabe que tais dias são raros. O comum é seguir levando, vendo como as coisas se desenrolam, reagindo a coisas maiores, exclamando o mesmo sempre e fotografando muito para ninguém. E chegarão os dias depois de hoje com a mesma e repetitiva carga de compromissos que você, como pessoa responsável e confiável, cumprirá com desvelo. E tudo se repetirá até o fim. Um dia, cercado de parentes e colegas zelosos, sua lápide registrará que ali jaz alguém que consumiu todos os dias existindo apenas. Foi exemplar, dirão todos, sem especificar exemplos. Deixou de existir sem nunca ter sido, pensarão os mais críticos. É preciso ter esperança, ao menos no dia de hoje que, em horas, terá passado para sempre.
Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.