Aquilo que me nutre
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Leandro Karnal
Dona Yeda chegara aos 83 anos viúva. A situação financeira era confortável. O marido a deixara bem. Os filhos a visitavam regularmente e, apesar da empregada durante o dia, ela insistia em morar sozinha. “Já cuidei de muita gente, agora eu quero paz”, repetia a senhora diante da insistência familiar por uma acompanhante noturna. Sua companheira de velhice era uma cadelinha maltês que a seguia como uma sombra. Dolly tinha chegado semanas antes do falecimento do dr. Samuel. A empatia entre as duas tinha sido imediata.
Mulher de hábitos pétreos, a senhora acostumara-se a fazer sempre do jeito dela. “Personalidade decidida”, dizia sua simpática funcionária da casa - “Teimosa como uma mula”, garantia o filho do meio. Exemplo? Havia muitos remédios diários para os males da idade. Eram sete pela manhã e quatro antes de dormir. Ela colocara todos em uma caixa de papelão na cozinha e, duas vezes ao dia, ficava retirando cada medicamento da sua embalagem para tomar. A primogênita comprou um separador. Dona Yeda elogiou como era prática a invenção: bastava abrir a tampinha e colocar todos na mão! Não era necessário pegar os óculos e examinar cada caixa. “Que bom, minha filha”, ela disse, beijando a testa de Ana. Sim, era bom e era diferente; e a mudança de rotina era o grão de areia que a ostra de Yeda jamais transformaria em pérola. Quando a jovem virava as costas, ela retomava o hábito de separar uma a uma cada drágea, relendo as receitas de uma imensa junta médica, que ia do cardiologista, passava pelo reumatologista, até chegar ao geriatra. O processo era demorado e demandava uma ordem de memória e organização que já tinham desaparecido sob os belos cabelos brancos daquela senhora.
Remédios e idade são coisas triviais. Havia algo original. Nem sempre firme com as mãos, olhos se adaptando às lentes multifocais que o oftalmologista prescrevera, a matriarca deixava rolar pelo balcão da cozinha algum comprimido, quando não derrubava toda a embalagem ao chão. Mal caía algo colorido ou branco do céu, a cadela, na terra, devorava com rapidez e gula. Sim, aos pés de dona Yeda, Dolly ficava atenta, aguardando. Era o desespero dos filhos e a alegria do animal.
O veterinário tinha profetizado o fim precoce de Dolly ao constatar o fato por exames. Os filhos compravam novos e belíssimos estojos separadores de remédio. Ignorando-os, as duas, Yeda e Dolly, firmes e constantes, locupletavam-se de delícias químicas. Ainda que a veneranda senhora reclamasse da voracidade da pequena fêmea com a farmacopeia, era, reconheça-se, uma espécie de comunhão. Elas dormiam juntas, comiam juntas, assistiam horas intermináveis de TV lado a lado e, claro, tomavam juntas seus remédios. Conheciam-se pelo olhar.
Amavam-se. Na saúde e nos remédios, na alegria e no antidepressivo: ambas sabiam que o casamento era pleno. Havia desconfiança de que, no fundo, Dona Yeda fosse como o rei Sardanapalo da lenda pintada por Delacroix: queria partir levando tudo o que amava em vida. Se o mundo prescrevia um amplo leque químico de produtos contra os desgastes do tempo, ambas seriam salvas ou envenenadas lado a lado. “Quanto tempo terei ainda de vida?”, perguntava a senhora para a cadela. O olhar do bichinho parecia dizer: “Pouco... como eu”. A brevidade da existência consolava ambas.
Dolly continuava firme e bem abastecida com aspirina cardíaca e remédio contra o lúpus. O comprimido mais apreciado era a ampla e gelatinosa cápsula de ômega três, a panaceia que garantia vida eterna e com saúde. Ela mastigava o metotrexato da artrite reumatoide da dona com um pouco mais de resignação. Talvez já estivesse desenvolvendo um senso gourmet para os fármacos. Porém, se fosse possível oferecer um menu ao animalzinho sobre suas preferências de mezinhas, ela latiria feliz com os xaropes para tosse. Eram a crème de la crème das beberagens. Bastava a mão trêmula de Yeda pegar da colher e a cadelinha lambia os lábios feliz. Algo pingava sempre e, em mostras da eficácia do remédio contra reumatismo, ela saltava no ar para alcançar a chuva.
Aos 90 anos bem vividos e felizes, Dona Yeda cerrou seus olhos diante da família chorosa. Dolly foi levada ao velório e ficou ao lado do caixão, talvez esperando que, uma última vez, algo caísse para ela poder saciar sua fome interminável de progressos farmacêuticos. Debalde!
Levada para a casa da filha Ana, sem remédios, o animal definhou rapidamente. O veterinário não conseguia identificar o mal. Tristeza? Talvez. Vinte e sete dias após o caixão da dona ter sido baixado ao solo, os filhos da matriarca entregavam o corpo de Dolly ao cemitério de animais. A falta de remédios e a melancolia combinaram-se de forma fatal. A mais velha lembrou de uma frase latina que vira tatuada em uma foto de Angelina Jolie: “quod me nutrit, me destruit.” Sim: o que me nutre me destrói, o que desejo me desgasta, o que mais quero me mata. Boa semana para todos.
Leandro Karrnal é historiador e escreve para a Agência Estado.