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Aposentado Rex

05 de Abril de 2019 às 23:33

José Feliciano

Os pensadores brasileiros da atualidade, com honrosas exceções, têm inteligência suficiente para abrir uma lata de sardinha com ajuda de manual. Alguns dos nossos modernos gurus vivem nos EUA, são sapo de fora, ou melhor out frog, mas juram que amam o Brasil e dão palpites em nossos destinos. Garantem que, com a reforma da Previdência, vai ser exigido sacrifício da população, afinal essa reforma já tem precedentes em países miseráveis e com padrões de vida iguais ao nosso como a Suíça, a Suécia, a Holanda e Dinamarca e têm servido de comparativo para os pensadores convencerem a população das mudanças. O sacrifício da nossa população será igual ao desses países subdesenvolvidos e as comparações param aí, depois começam as nossas reais similaridades com Burkina Faso, Nigéria, Zimbabwe, cuja expectativa de vida chega a 55 anos, um modelo que favoreceria nossa reforma já que o limite final proposto é de 75 anos. E as ações já começaram, com a redução dos impostos sobre cigarros e liberação do porte de armas: de algum modo vão surgir vagas de trabalho e trazer “aposentadoria” mais cedo para alguns.

Estamos animados e convencidos que seremos salvos pela reforma da Previdência. E ai de quem se posicionar contra, poderá ter de carregar a sua carteira de trabalho sozinho pela eternidade, assim como os funcionários públicos serão banidos do céu da aposentadoria integral pelo pecado de terem sido selecionados num concurso público, com exigência de conhecimento prévio através de provas, comprovação de títulos e sem indicação.

Essa empolgação é fácil de entender, afinal o Brasil adora projetos gigantescos, megalomaníacos e salvadores. Já tivemos a Transamazônica, a maior de todas as estradas, que ligaria o país ao outro lado do mundo e conseguiu, pois, os buracos são tantos e tão profundos que alguns caminhões seguem para Manaus, mas chegam a Tóquio. Já fomos o “celeiro do mundo”, menos pelos grãos produzidos e mais pelos ratos. É preciso lembrar do Maracanã, o maior estádio de futebol de todos, onde se descobriu que cabia um número gigantesco de torcedores e outro impensável de empreiteiras corruptas. Temos até o maior escândalo de corrupção do mundo! E agora a maior empreitada que vai salvar o país: a reforma da Previdência. Uma espécie de Santo Graal da economia brasileira, a redenção das nossas misérias.

E no meio de tanta gente mirando essas reformas salvadoras é preciso olhar para os futuros aposentados ou pelo menos imaginar quem serão esses seres lendários. Com a proposta o aposentado como conhecemos corre o risco de tornar-se uma lenda urbana como a loira no banheiro ou o sujeito encontrado sem rins na banheira de gelo, só que no caso do primeiro o susto virá do contracheque para o próprio aposentado. Vamos rir enquanto nos restam uns dentes:

-- O que aquela gente está fazendo ali. Que tumulto é esse!? Algum artista?

-- Não está vendo? Nossa estou excitadíssima, é um deles!

-- Um deles quem?! Por favor, me diga!

-- Um aposentado! Escavaram as ruínas do INSS e acharam um, não é incrível? Está todo mundo querendo tirar uma selfie eu preciso conseguir uma, tira pra mim, tira?

-- Aposentados! Eu pensei que eles não existiam mais! Eu nunca mais vi um desde a reforma da Previdência.

-- Pois, é! Acharam um da espécie, tomara ele tenha mais sorte que a ararinha-azul e o boto-cor-de-rosa.

A reforma da Previdência salvará o país da miséria, mas não diz como os aposentados se salvarão aos 75 anos. Trabalhar até os 75 anos para depois gozar a aposentadoria é pura gozação. Programa de aposentado é visitar balcão de farmácia. Fazer loucuras é deixar o check-up para o ano que vem. Levando em conta o comparativo que fez o ministro da Economia, Paulo Guedes, na CCJ do Congresso, que um aposentado recebe em média R$ 1.400 por mês fica difícil saber quantos sobreviverão. Se daqui há uns 100 anos os insatisfeitos quiserem se reunir e gritar: “Aposentados do mundo uni-vos!”, não vai dar quórum porque ninguém vai ter completado o tempo de serviço.

-- Está gostando do museu, meu bem?

-- Hum, hum... Papai, o que é aquilo?

-- Não é aquilo, é aquele. É um Aposentado Rex.

-- Nossa como ele ficou assim?

-- Não precisa se assustar filha, eles entraram em extinção faz tempo.

-- Foi um meteoro que destruiu eles também, como os dinossauros?

-- Não, minha querida, foi algo muito pior. Foi teto da aposentadoria de mil e quatrocentos reais! Os dinossauros tiveram mais chance.

Com a proposta que vai nos salvar é provável que algumas famílias adotem certos costumes milenares em relação aos nossos idosos que não conseguirem se aposentar.

-- Meu Deus, Juvenal! Não é o seu avô que está se afogando lá no meio do mar?

-- É. É ele sim. Tchau, vovô!

-- Juvenal você não vai salvá-lo? E por que toda a sua família está dando tchauzinho com essa alegria? O homem está se afogando!

-- Graças às mudanças na aposentadoria adotamos um velho costume, inuit, dos esquimós, quando alguém ficava velho, sem renda e não conseguia produzir mais nada, era colocado numa plataforma de gelo e solto no mar para ser levado, se tivesse sorte...

-- Mas aqui é o Brasil, não tem gelo!

-- Pois, é... Tchau, vovô!

Tomara sejamos salvos pela Previdência porque, depois só vai sobrar a Providência. Tomara!

O Brasil não tem face. Tem retrato falado.

José Feliciano -- Redator de humor e mistérios -- Médico na fila da aposentadoria.