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Amigos e canalhas

09 de Agosto de 2020 às 00:01

Amigos e canalhas Crédito da foto: Divulgação

Leandro Karnal

O mundo tinha virado um caos. Zeus considerava que a humanidade era irrecuperável. Decidiu que destruiria toda a espécie com fogo. Ergueu seu raio e ia atirar contra o solo, quando pensou que um incêndio daquela proporção poderia afetar até a morada dos seres olímpicos. Ordenou então, como em tantas narrativas antigas, eliminar os mortais pelo dilúvio. As águas jorraram e começaram a afogar milhões.

Havia um casal de justos: Deucalião e Pirra. Ele era filho do próprio titã Prometeu. Alertado pelo pai divino, construiu uma arca e salvou a si e à amada esposa. Ao descrever o mito, o poeta romano Ovídio coloca a frase na boca do sobrevivente: “Nos duo turba sumus” (Nós dois somos uma multidão). A frase tem lógica, porque o isolado e piedoso casal seria a nova semente de todos os mortais seguintes. Eram uma multidão de dois.

Joseph Addinson (1672-1719) usa a epígrafe de Ovídio para definir a amizade. Para o inglês, os amigos são um remédio de vida e curam as dores e angústias que se instalam na nossa existência neste mundo (a friend’s being the medicine of life, to express the efficacy of friendship in healing the pains and anguish which naturally cleave to our existence in this world). A ideia está em uma coletânea feita há 110 anos: The Gift of Friendship (O presente/dom da amizade), que encontrei no fabuloso Projeto Gutenberg (gutenberg.org). A capa traz uma frase definidora: “Friendship is a sheltering tree” (a amizade é uma árvore protetora). No livro de 1910, filósofos e escritores são citados nas páginas mais luminosas dos pensamentos sobre a relação entre pessoas que se estimam fraternalmente.

Uma das minhas primeiras crônicas para o Estadão foi sobre a amizade (28/8/2016). Lá, eu usei Montaigne para definir o motivo de alguém gostar de um amigo: “Porque era ele e porque era eu”. A ideia descritiva da relação entre o filósofo e seu amigo Étienne de la Boétie é poética e densa. Não existe um motivo racional na amizade. Os amigos surgem da especificidade de um afeto, no mistério insondável de cada biografia. Ao crescerem na relação, passam a ser uma multidão, algo maior, muitas coisas debatidas e vividas na sedimentação do amor.

Autores práticos como Francis Bacon, um pouco posteriores a Montaigne, destacam os benefícios da amizade: paz nas afeições, apoio do julgamento e ajuda em todos os momentos (peace in the affections, and support of the judgment followeth the last fruit; which is like the pomegranate, full of many kernels; I mean aid, and bearing a part, in all actions, and occasions).

A tradição é antiga: Aristóteles havia destacado também que a amizade era uma virtude. Ela ajudava o jovem a errar menos e a amizade transmitiria à mente a ideia de ser bom consigo mesmo. Os amigos são necessários para auxílio na desgraça e, na prosperidade, para conselho e exercício da bondade. Bacon e Aristóteles olharam para a amizade como uma relação de mútuo ganho, amparo, proteção e benefícios recíprocos. Estão certos! A frase de Aristóteles é citada no texto de Francis Bacon: quem se deleita com a solidão ou é um animal selvagem ou um deus.

Li os muitos autores da obra sobre a amizade. Cada um discorreu com elegância e erudição sobre amigos e amizade. Samuel Johnson (1709-1784) recupera a tradição platônica/socrática sobre a isonomia de amigos e cita Salústio (86 a.C. -- 34 a.C.) que define amizades a partir da comunhão de afetos e de ojerizas em comum. George Berkeley (1685-1753) chega a aproximar o equilíbrio de atração e equilíbrio entre estrelas e planetas com o que leva um amigo a outro, indicando, com isso, que a amizade estaria inscrita em uma ordem natural divina e astronômica, desejada pelo criador e organizada pela matemática suprema das esferas e da astronomia. São lindas e poéticas metáforas.

Volto a Montaigne e a Ovídio. A única explicação do afeto de amigos é a existência da outra pessoa. O amigo é imprescindível porque é ele, apenas, sem muitos outros qualificativos. Os benefícios podem ocorrer, porém brotam da simples existência da generosa fonte da amizade. Assim, um sendo quem é encontra outro e surge uma multidão, como Deucalião pensou sobre o casal isolado pós-dilúvio. Os amigos se salvam do dilúvio da banalidade, analisam-se, observam-se e lançam um dom precioso e forte: a sinceridade. Para ser amigo de alguém, eu preciso ser comigo mesmo. Não sendo animal nem deus, necessito de outras pessoas. A multidão de dois é fabulosa. Enfim, a sós com um grande amigo, bebendo vinho, cerveja ou chá, conversando olho no olho, você percebe que cada um está ali porque desejou ser, simplesmente ser, parte da multidão binária e complementar da entrega afetiva. A amizade é um dom cultivado, um equilíbrio existencial, uma luz em meio a um mundo áspero e complicado. Como previa o amigo de Montaigne, somente os bons possuem amigos. Os maus fazem uma conspiração e não amizade. Os canalhas apenas se entre-temem.

Amizade é virtude e exercício corajoso de entrega. É um dom. É uma epifania. A verdadeira e devastadora solidão é estar cercado de pessoas que não são amigas. Seria melhor ser uma besta selvagem uivando em uma caverna. Boa semana para você e para seus amigos.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.