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Alex, o bilíngue

17 de Janeiro de 2021 às 00:01

Crédito da foto: Reprodução / Internet

Leandro Karnal

“A chave está na gaveta do criado-mudo.” Ele não tinha a menor noção de que aquela pequena frase, que respondia a uma demanda simples dela, seria o estopim de uma batalha.

-- “Criado-mudo? Como você usa uma expressão destas? É racista. O criado-mudo era o escravo doméstico que ficava imóvel no quarto aguardando ordens. Por que não mesa de cabeceira?”, disse Rosa com olhar irritado.

Alex não era preconceituoso, porém, naquela primeira manhã em que despertavam do mesmo leito, tivera um aviso. Os dois tinham enorme “química” e estavam sentindo uma alegria crescente no namoro, ainda que... as palavras surgissem como “pedras no meio do caminho”. Diplomático, Alex pediu desculpas e disse que só usaria mesa de cabeceira dali por diante.

Dias de idílio até o cascalho seguinte. “Sou o único sem curso superior dos meus irmãos, disse ele, quase a ovelha negra da família.” Era para ser divertido. Ele crescera ouvindo Rita Lee, que também fora a ovelha negra de sua família. Rosa quase perdeu o controle. “Por que a palavra ‘negra’ associada ao ruim?” O assustado emissor do termo pediu desculpas e disse que ela estaria “judiando dele”. Gasolina no fogo da raiva. “Judiar?”, bradava Rosa. “Judiar?” -- repetia com furor. Uma ovelhinha, um verbo e um móvel de quarto já eram três indícios de crise enorme. A ira da menina durou muito tempo.

Alex estava sendo introduzido no mundo da ideologia dos termos. Ou melhor, Rosa introduzia nele, a fórceps, os cuidados com a área 51 dos vocábulos. Eram óvnis de uma era antissemita, racista, misógina e homofóbica. Por interesse, amor ou curiosidade, o namorado aceitou a mudança de vetor linguístico. Passou a estudar o tema. Aprendeu que nunca deveria usar “homossexualismo”, pois isso era associado à doença. Ah... se Rosa soubesse os termos que os amigos dele usavam na loja ... Mesmo o que antes parecia neutro, era terreno minado: “Opção sexual” implicaria supor que um ser humano pode escolher sua orientação sexual. Sua irmã deixou de ser “mãe solteira”, pois, afinal, ele acabou concordando, nunca se usava a expressão “pai solteiro”. A mãe não casada era o indicativo de um papel da mulher que a sociedade tradicional cobrava.

Os meses avançavam. Desapareceram os anões da fala, as favelas, o verbo denegrir, a mulata, sentir inveja branca, colocar na lista negra, o cigano, um esclerosado e até seu tio Lupércio deixou de ser “encostado” na previdência pública. Aliás, o outrora encostado deixou de ser velho para estar na melhor idade. Cores em geral e características físicas eram a pólvora seca aguardando uma palavra incendiária. Ficou complexo brigar no trânsito. Tudo o que ele usava antes garantia duas brigas: com o motorista e com a namorada. Os amigos e a família notaram a diferença. Em momento de idílio, Rosa explicava que as palavras continham discursos de ódio, mesmo que ele não notasse. Existia bullying verbal e ele atingia pessoas historicamente humilhadas. Pior, completava a didática jovem, servia para baixar a autoestima, podendo estimular violência e até suicídio. Palavras eram armas e o porte da voz deveria ser concedido com o mesmo cuidado de permitir um AR-15 em casa.

Rosa era professora brilhante, bonita e tinha um genuíno interesse no progresso da espécie humana. Alex a amava cada vez mais e desejava nunca ofendê-la ou a qualquer pessoa, mas era como aprender uma nova língua. Pior: o bilinguismo tinha de ser praticado a cada instante, pois em um momento ele estava com colegas de trabalho e ouvia piadas e expressões que provocariam um AVC em Rosa e, em outro, com a namorada e seus amigos com todos os cuidados e pudores linguísticos. Alex não achava seus colegas pessoas ruins ou agressivas, apenas via que, entre debater os termos “orientação sexual” e “opção sexual” eles usavam, com mais frequência, vocábulos com menor elaboração filosófica: “Bicha, veado, baitola, maricas, morde-fronha, afrescalhado etc.”. Havia até uma certa sofisticação na tosquice quando um amigo usava algo novo que todos riam, como quando Sandro disse que, para seu avô interiorano, o novo caixa do restaurante por quilo em frente era um “pula pocinhas adamado”. Todos riam. Depois de ouvir amigos e gargalhadas o dia todo, Alex mudava a língua para encontrar com a amada. Em estudos linguísticos dizemos que a linha que separa duas falas distintas é uma isoglossa. A isoglossa de Alex era luminosa: quando o sol caía, a língua mudava. Alex vivia como em algumas regiões da Suíça ou da Bélgica: na casa ao lado existia outra cultura com sua respectiva língua.

Desde o inicial “criado-mudo”, Alex tinha mudado muito. Nunca mais se ouvia dele expressões sabidamente problemáticas (da cor do pecado, fazer nas coxas, rodar a baiana) até aquelas que demandavam mais explicações (inhaca, a dar com pau, etc.). Houve até o dia em pode radicalizar sua antiga mestra. No convite de casamento, mandou escrever “todes” no lugar de “todos”. Ela sorriu, apaixonada. Aquele gênero neutro era a certeza de que ambos se amavam e falavam a mesma língua. O bolo das núpcias era multicolorido para evidenciar que não havia um imaginário de virgindade simbólica. No topo, os noivos estavam representados com a mesma roupa vermelha em engenhosa arquitetura confeiteira: ambos lavavam louça lado a lado, felizes. Uma obra de arte! Eles entraram juntos na igreja para não ocorrer a algum desavisado a ideia de que um homem, o pai de Rosa, a entregava a outro homem como novo senhor. Ao fundo, ouvia-se a música de Clarice Falcão “Eu Sou Problema Meu” no lugar da “Ave Maria”. São felizes até hoje. Geraram filhes lindes. De quando em vez, Alex visita os amigos do antigo emprego e bebem uma cerva, zoando dos gays da rua e cantando as gostosas que passam. O encontro dura apenas uma hora contada, na última sexta-feira de cada mês. Depois, Alex retorna a sua nova língua, sem pensar muito no encontro com os “parça”. Boa semana a todas, todos e todes.

Leandro Karnal é historiador e escritor.