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Ainda sobre ‘As duas Irenes’

12 de Outubro de 2018 às 05:00

Ainda sobre ‘As duas Irenes’ “As duas Irenes”: duas histórias que não se articulam dificultam uma interpretação global. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti

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No artigo da semana passada afirmei que “As duas Irenes” conta duas histórias que poderiam dar origem a dois filmes independentes: um sobre a família, outro sobre o início da vida adulta. Como a trama ocorre na década de 1950, levantei a hipótese de que a protagonista esteja sentindo as transformações da paternidade e da sexualidade que ocorreriam na década de 60.

Convém aqui discorrer brevemente sobre a interpretação de filmes (e textos e obras de arte de modo geral). Existem interpretações certas e erradas (dizer, por exemplo, que “As duas Irenes” é metáfora da condição social da Nigéria é dar uma interpretação errada do filme). O filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov, em Estruturalismo e poética, afirma que, dentre as interpretações plausíveis, existem boas e más; e que a melhor é a que consegue explicar o maior número de elementos da obra; ou seja, é a que cobre o maior número de pontos do texto. Grandes cineastas tratam de temas complexos e são cuidadosos em se concentrar neles, evitando discorrer sobre o que é supérfluo. Esse cuidado do cineasta é essencial para o espectador que analisa a obra, porque o faz partir do pressuposto de que no filme tudo é importante, se encaixa e deve ser considerado para um sentido global.

Gostaria de esclarecer este ponto, tomando como exemplo o filme “A separação”, já exibido na Fundec e comentado nesta coluna. Como “As duas Irenes”, o filme de Asghar Farhadi contém duas histórias que caminham juntas: a separação do casal Nader e Simin e o processo judicial movido por uma cuidadora contra o protagonista. Se o processo fosse inserido como recurso comercial de dar à obra certo suspense, cairia no defeito de muitos filmes: o de prejudicar a compreensão da tese central (a separação) pela dispersão de fatos estranhos a ela (o processo). Mas, tomando as duas condições extremas da escala das instituições nos âmbitos privado e público -- família e justiça --, o filme transmite a noção de que, despeito do esforço do ser humano de tornar sua vida previsível e sob controle, ele é submetido a instituições das esferas pública e privada que não são racionalizáveis. A fusão das duas histórias aprofundou e ampliou as teses que poderiam ser extraídas de cada uma separadamente.

“As duas Irenes” é um bom filme, mas frustra o espectador que procura nele um sentido geral. A ousadia das vestimentas das duas jovens em uma cidadela interiorana e seus avanços ousados, sem timidez, que efetuam na direção de rapazes, mais se parecem aos das jovens do século 21. Esse anacronismo poderia ser interpretado como um discurso sobre atemporalidade da paternidade e da sexualidade. No entanto, falar que estes sejam temas atemporais é dizer o óbvio e deles se ocuparam pensadores de todos os tempos, incluindo Freud. A personalidade de Tonico, pai das duas Irenes, pode ser encontrada desde antes da década de 50 até na atualidade. Por outro lado, as atitudes das duas Irenes com respeito ao sexo oposto não são da década de 50 e isto pode assegurar quem, como eu, era adolescente naquela ocasião e morava na Capital.