Agenda de outono
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Leandro Karnal
O mês de maio tem inúmeras qualidades. O céu é claro com frequência, as temperaturas não estão elevadíssimas e escasseiam frios rigorosos. Algumas despesas fortes (IPVA, IPTU, Imposto de Renda, matrícula, material escolar, etc.) já foram pagas ou, se parceladas, deixaram de causar impacto psicológico da novidade. Um elemento subjetivo importante: estamos mais ou menos equidistantes das festas que dissolvem decisões de reflexão ou trabalho: Natal, Ano-Novo e carnaval. Mesmo a Páscoa, mais neutra, já passou. Temperaturas convidativas, depressão financeira parcialmente superada e sem blocos passando ou cheiro de panetone no ar, floresce uma boa alternativa de outono: ler mais.
Ler é uma decisão e insistir em textos pode produzir um hábito. Para voar no mundo das letras, é importante saber a força das asas de cada um. Ambições elevadas demais podem estragar o projeto. Metas baixas induzem ao tédio. Se o seu desejo/hábito por livros for pequeno, comece de forma mais simples.
Estabeleça uma meta menos ousada: cinco páginas por dia, por exemplo. Mantenha-se firme e, em uma semana, você pode ter conseguido ler dois contos ou um pequeno romance. Se os próximos meses confirmarem que você atende bem ao estipulado, vá aumentando mensalmente. Como eu digo aos alunos, decisões ambiciosas demais nos aproximam dos atletas amadores da prova de São Silvestre: saem em disparada e, poucos quarteirões após a largada, estão sentados no meio-fio, exaustos e fora da disputa. Corredores profissionais sabem da importância do ritmo constante. Fora as leituras obrigatórias de cada ramo, um ritmo acima do fraco e bem abaixo do perfeito seria de dois livros por mês. Esse ‘combustível‘ permite que você reflita, atualize e mantenha seu cérebro funcionando. Como eu disse, é abaixo do perfeito, mas quem trabalha com a ideia da perfeição nunca lê e, provavelmente, jamais casará.
Um exemplo banal de como a leitura muda nossa visão de mundo. As pessoas comentam em casa ou no bar que o tempo está passando rápido demais? Dizem coisas de senso comum como ‘daqui a pouco estaremos no final do ano novamente‘? Bem, Allan Burdick fez uma investigação sobre o tema em Por Que o Tempo Voa (São Paulo, ed. Todavia, 2020). A escrita é excelente (tradução de Paulo Geiger) e sua noção sobre o tempo e sua aceleração (e seu uso prático) darão uma reviravolta em seu entendimento do assunto. Aqui você começa a se separar do senso comum e a perceber argumentos muito inovadores para sua cabeça e, eventualmente, suas conversas.
Santo Agostinho citou, Shakespeare conheceu e quase todos os intelectuais clássicos leram. Refiro-me a um livro fundamental: O Asno de Ouro, de Apuleio. A nova edição bilíngue da 34 está ótima (tradução, prefácio e notas de Ruth Guimarães, apresentação e notas adicionais de Adriane da Silva Duarte). O autor (segundo século da nossa era) nasceu na região romanizada da atual Argélia. Culto, foi influenciado/guiado pela obra de Ovídio, As Metamorfoses. O modelo é tão forte que a obra, originalmente, apresentava o mesmo título. Foi um autor cristão, o já citado Agostinho, que batizou a obra de Asinus Aureus (O Asno de Ouro). O texto picaresco conheceu enorme difusão, dos já citados ao nosso Machado de Assis, de Monteiro Lobato a Ricardo Azevedo, como nos informa Adriane da Silva Duarte na apresentação. É uma obra seminal e de referência.
Por que ler um clássico? Porque ele transforma nossa maneira de pensar, fornece vocabulário, mostra raízes, disseca influências e faz um upgrade poderoso na caixa encefálica. Lembre-se ao encarar o Asno de Ouro: não é um best-seller que facilite tudo ao leitor para cativar audiência.
Um livro que ganhei e gostei muito, ainda sem tradução: Life 3.0 - Being Human in the Age of Artificial Intelligence (Penguin, 2017). Max Tegmark passa por temas como a definição da inteligência e uma análise dos próximos... dez mil anos. O livro abre a imaginação, analisa um mundo novo e sempre admirável no que o futuro apresenta de terrível e fascinante. Talvez muitos gostem de uma questão em particular: como ficarão os empregos no brave new world?
O tema da felicidade foi tratado por Aristóteles, Epicuro, Epicteto e Shakespeare. Porém, hoje parece que a simples menção ao conceito já faz todo mundo dizer que é autoajuda. Nada mais enganador. Dois livros recentes dialogam com pesquisas, filosofia e reflexão distinta de fórmulas prontas. Um é sucesso de um professor de Harvard: Shawn Achor. O livro saiu pela Saraiva/Benvirá: O Jeito Harvard de Ser Feliz (tradução de Cristina Yamagami do original The Happiness Advantage). O outro é do escritor brasileiro que estuda pesquisas científicas sobre realização e felicidade: Luiz Gaziri. Tive o privilégio de fazer o prefácio da obra mais recente: Os Sete Princípios da Felicidade (Faro Editorial).
Clássicos, temas ligados à existência e à felicidade, romances, poesias: um livro é uma alavanca e possibilita erguer o mundo, ao menos o seu mundo. Um pequeno conto de Machado, um texto de Clarice Lispector, uma peça de teatro de Nelson Rodrigues: ninguém sai igual da imersão na inteligência. Sem ler, não existe esperança de melhora. Você odeia o político A ou B? Ambos têm uma característica em comum: a falta de leitura. Boa pista para hoje. Ler é esperança pura!
Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.