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A tristeza de ser a única pessoa certa do mundo

06 de Março de 2019 às 00:01

A tristeza de ser a única pessoa certa do mundo Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

Quando os oficiais chegaram à residência, havia um corpo no primeiro andar. Sem vida, Marc-Antoine Calas encarnaria uma disputa maior do que sua mísera existência. Era um jovem que não completara os estudos e que tinha dívidas de jogos de azar, um fracassado. Morreu na casa de seus pais. A primeira versão era a de que havia sido assassinado. Na falta de suspeito melhor, o próprio pai foi preso e, na cadeia, mudou a história originalmente contada. Passou a sustentar que seu filho cometera suicídio, mas que a família, ao descobrir o corpo, resolvera simular um homicídio.

Estamos na França do século 18 e, realmente, tirar a vida era visto como uma maldição, o corpo sequer poderia encontrar descanso eterno em solo consagrado. Os Calas, juravam, não haviam matado o filho, mas buscavam dissimular sua morte para tentar salvar sua alma. O juiz do caso não se convenceu. Sentenciou Jean Calas à roda e a uma série de outras torturas. Com o corpo todo quebrado e torturado, o comerciante deu seu último suspiro em 10 de março de 1762.

A peça que estava faltando nesse enredo: ele era protestante e a França um país de maioria católica. O próprio Voltaire analisou o caso e tentou interceder por Calas, mostrando o quanto de intolerância religiosa motivava a condenação. Não foi o suficiente. As suspeitas (infundadas) de que Jean Calas não só era um huguenote como um ativista anticatólico eram fortes. Seu filho mais velho já abandonara a família e se convertera à fé de Roma. Para evitar que o segundo seguisse o mesmo caminho, o pai o matara, diziam. Voltaire mostrou o suicídio e expôs a motivação (dívidas, a falta de formação porque, como protestante, Marc-Antoine, fora barrado de completar seus estudos). De que valia escutar a razão se o preconceito era mais reconfortante?

No ano seguinte, o filósofo publicou seu Tratado sobre a tolerância, no qual argumentava o quão prejudicial era todo o tipo de fanatismo religioso e como identificar tais posições. Acima de tudo, conclamava os religiosos a irmanaram-se em vez de se atacarem. O texto chegou ao Rei, que, postumamente, perdoou Calas, restabeleceu o bom nome da família, e dispensou o juiz do caso.

Não era a primeira publicação sobre o tema e não seria a última. Décadas antes, por exemplo, em seu exílio na Holanda, John Locke escreveu uma carta a seu amigo Phillip van Limborch, sobre a tolerância. Sem seu consentimento, o texto foi publicado em Londres no tumultuado ano de 1689. No texto, o filósofo inglês argumentava que Estado e Igreja são coisas de natureza e função absolutamente distintas. O primeiro era criação humana para cuidar das coisas mundanas e materiais, tendo o poder de coação com quem fugia da lei. A segunda era voltada à Salvação, uma manifestação pública de um compromisso privado de Salvação, de ordem celestial, sem poder coercitivo. Ninguém deveria obedecer a Igreja por medo de coerção, mas por prerrogativa de fé. Logo, um magistrado (um oficial do Estado) nada deveria legislar ou punir em matéria de fé. Um sacerdote, por sua vez, não deveria se intrometer em assuntos de Estado. Locke mantinha fora de sua tolerância os “papistas” e os ateus. Mesmo com essa nota de intolerância, suas ideias inspiraram o Parlamento a aprovar o Ato da Tolerância, que concedeu liberdade de culto aos não-conformistas (ainda que com muitos senões).

Uma das grandes construções da modernidade é a separação entre Estado e Igreja. A fé passa ao lugar onde ela tem sentido e até beleza: o foro íntimo, a comunidade no máximo. Deixa de estar amparada pela pompa do Estado e pelo embasamento jurídico. Cada um cultua (ou nega culto) a quem ou ao que desejar. Dentro da lei, todas as liturgias, orações, convicções sobre alma ou anjos saem dos tribunais oficiais e migram para a consciência de cada um. Houve séculos de luta no Brasil, por exemplo, para que uma simples igreja protestante pudesse ter torre, algo só obtido com a República e o fim do Catolicismo como religião oficial no país Os crentes e não crentes, devotos de religiões de matriz africana, judeus e islâmicos, católicos e evangélicos são unidos pelo denominador comum: cidadãos brasileiros. A liberdade de culto protege os fiéis de ataques de não fiéis e protege a todos do discurso totalitário daqueles que querem impor sua vontade a outros. Em países, crenças e formações distintas, tanto Voltaire quanto Locke entenderam o valor da tolerância ativa, a defesa decisiva da liberdade de opiniões. Ela supera o mal tóxico da intolerância. Da mesma forma, evita-se o veneno suave da tolerância passiva: “respeito suas ideias, mas não se aproxime de mim!” A tolerância ativa é mais do que isso: eu preciso que alguém seja diferente de mim, pois é na diferença que sou obrigado a pensar minha própria forma de ser, alargar meus horizontes, questionar minhas certezas. É uma conquista que garante paz e progresso, desenvolvimento e ordem a todas as sociedades, como a da pioneira Holanda, que entendem que o Estado é a reunião de cidadãos e não assembleia de devotos. Separar Igreja de Estado é um avanço extraordinário.

Aprofundar a tolerância ativa é o desafio de todas as gerações. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.