Buscar no Cruzeiro

Buscar

A trincheira do farol

24 de Junho de 2020 às 00:01

A trincheira do farol Crédito da foto: Aldo V. Silva / Arquivo JCS (28/2/2010)

Leandro Karnal

As grandes corporações possuem departamentos de marketing, gestores de estratégia, pensadores sofisticados que acompanham as mais recentes Ted Talks sobre tendências estudadas em Harvard e Yale. Por vezes, imagino, deveriam abrir mais o vidro do carro parado em um sinal na esquina das grandes cidades do Brasil. Nonsense?

O vendedor dos cruzamentos é um termômetro rápido que causaria inveja a muitos especialistas. Ele mede com precisão o “humor” do mercado e do consumidor. O tempo nublou? Nuvens pesadas anunciam tormenta? Capas de plástico e guarda-chuvas surgem nas mãos laboriosas do ambulante. Choveu e os mosquitos se multiplicaram? Raquetes elétricas serpenteiam entre os espelhos retrovisores. Joga o Corinthians? Preto e branco se espalham entre bandeiras, camisetas e bolas customizadas. O homem talvez tenha time em casa, o vendedor da rua tem público e mercado: pode estar de verde no dia seguinte.

O dia termina e os carros voltam da sua jornada. O ágil mercador identifica veículos dirigidos por homens. Chega e oferece um buquê de rosas pronto e bonito. Sugere levar algo para a esposa. O empresário pensa na boa ideia e, por amor ou culpa, compra em rápida negociação. O tempo é curto. Não é a barganha elaborada e ritualística de um tapete no Grande Bazar de Istambul. A leitura do rosto e da intenção do comprador deve ser mais ágil do que o diligente turco com o kilim nas mãos. Tudo deve ser resolvido no prazo máximo de um minuto. Terminado o tempo, o sinal abre e o cliente foge.

Horários de fome do meio da tarde? “Larica” espalhando sua influência na metrópole? Surgem frutas em bandejas e até casquinhas crocantes acompanhadas de um sorriso. Cajus enfileirados causam impacto visual. O notável é que as comidas são oferecidas pelo mesmo ambulante que, uma hora antes, empunhava mapas. Sim, vendem-se peças cartográficas nas esquinas! Enrolados ou abertos, apelam a pessoas mais velhas que os usaram na escola. Talvez aquele senhor septuagenário compre para dar ao neto. Também provável que o adolescente presenteado agradeça com educação e pense que tem um aplicativo mais prático no seu celular para aprender Geografia.

Quando é seguro, deixo o vidro aberto nas esquinas. Escuto e aprendo. Sou chamado de “doutor”, “campeão”, “grande”, “bacana” e recebo um sorriso embebido em treino de palco urbano. Vender é esbanjar simpatia. Frases de impacto, gestos marcados e eficazes: tudo ajuda naquela luta instantânea. Um autônomo de farol poderia dar cursos muito instrutivos para uma pós-graduação em técnicas de venda.

Há espaço para a criatividade empreendedora. As pessoas comuns vendem garrafas plásticas de água. O empreendedor original se veste de garçom. Por quê? A camisa branca, a calça preta, a gravata-borboleta e a pochete com dinheiro trocado (ok, ninguém é perfeito) agregam rápida identificação com uma personagem confiável. Quem faz propaganda na televisão ou foto publicitária sabe que o consumidor necessita identificar uma enfermeira ou professora em segundos rápidos. O estereótipo é eficaz. O público precisa conhecer em um olhar quem é e o que vende. A personagem vende muito mais.

Todo trabalho honesto é digno. Eu substituí meu azedume de outrora pela tentativa de ver e aprender. Ali andam, rápidos, seres humanos lutando para sobreviver, como eu. Apenas algumas coisas me irritam muito: crianças usadas para esse fim. Sabendo que somos mais simpáticos ao vendedor mirim, constato, em pleno horário escolar, os pequenos passando entre os carros. Em geral, mais adiante, gordos progenitores descansam sob uma sombra. Nunca compro de menores e ainda reafirmo forte: “Você deveria estar na escola”. Uma única vez parei o carro e fui vociferar contra um senhor (pai?) que colocava três meninas vendendo. É perigoso fazer o que eu fiz, mas o fato me tira do cercadinho da razão.

Há mais ambiguidades no comércio que estou tratando além da exploração do mundo infantil. Há produtos sem nota fiscal, contrabando frequente, controle de qualidade inexistente, condições sanitárias claudicantes com a comida oferecida, falta de licenças ou alvarás e uma concorrência com aquele comerciante que, na sua loja, paga impostos altos para ter o direito que o da rua obteve gratuitamente. A concorrência é real e marcada pela desigualdade. A informalidade é um imperativo que deve crescer ainda mais na crise atual.

Aprendi algo novo conversando com vendedores. Nem sempre, ao lado do seu carro, está um autônomo que vende seus produtos. Por vezes, há um chefe por detrás dele. Alguém que tem capital para comprar mais, organizar, trazer o vendedor e constituir um novo tipo de empresário. Assim, sem nenhum amparo trabalhista, surgem formas de ocupação que geram recursos para alguém bem distante daquele sorridente ser humano ali presente.

Por fim, com suas genialidades e ambiguidades, temos algo a aprender observando mais e conversando mais. Independentemente de tudo, um ser humano merece sempre nossa simpatia por estar ali, de pé, lutando. Para mim ou para você, muitas vezes, chama-se importunação.

Para ele, sempre, intitula-se sobrevivência. Compro pouco, mas tento ver que existe alguém. Ser invisível é um castigo enorme para quem tem pressa em comer. O farol é a trincheira de uma guerra difícil e sorridente. É preciso ter esperança e um pouco de empatia em momentos bicudos como o atual.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.