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A religião e a política

25 de Outubro de 2020 às 00:01

Dom Julio Endi Akamine

Jesus foi questionado sobre a licitude de pagar imposto a César (Mt 22,15-21): É lícito ou não pagar o imposto? Como hoje, a polarização das posições tornava impossível um consenso: os fariseus se opunham, os herodianos eram favoráveis. Tendo encontrado, porém, um adversário comum os dois grupos rivais se unem para forçar Jesus a fazer um pronunciamento que fosse desaprovado por um ou outro partido. Como sempre, Jesus não se esquivou nem deu uma resposta de sentido dúbio.

Aqueles homens usaram a lisonja como isca. Os lisonjeiros, embora digam a verdade, são possuidores de uma alma vil. Fingindo drama de consciência e admiração pessoal, elogiam com má intenção. Eles reconheciam a fidelidade de Jesus como mestre, sua sinceridade, seu destemor. A lisonja, porém, era também um insulto, porque pensavam que Jesus ficaria com medo ou que caísse como um ingênuo na armadilha preparada.

Pagar imposto era um ato de reconhecimento dado a uma autoridade política. A questão se revestia de um cunho também religioso que envolvia a consciência. Além da mordida econômica, o imposto a César incluía o pagamento a uma potência estrangeira cujos governantes não podiam ser considerados legítimos representantes de Deus, pois eram pagãos.

Jesus percebeu a maldade deles. Eles não vinham como polemistas. Se assim fosse, mereceriam ao menos o respeito de Jesus.

Mostrai-me a moeda do imposto. De quem é a figura e a inscrição? A inscrição do denário era: Tibério César, filho do divino Augusto. A pergunta de Jesus rompe os fios da cilada: os adversários mesmos devem reconhecer, surpreendidos e envergonhados, que a moeda que trazem nos bolsos os insere no sistema econômico do império. Com aquelas moedas, eles compravam e faziam os seus negócios; certamente tinham avidez de amealhar a maior quantidade possível de tais moedas pagãs. Eles só se perguntam sobre a licitude de um ato, quando têm que pagar, mas não estão nem um pouco preocupados com a moralidade, quando se trata de interesses pessoais. Não têm dramas de consciência, quando a moeda de César lhes proporciona vantagens; só há problemas quando devem restituir a César.

Além de desmascarar a hipocrisia, Jesus acrescenta: “Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”.

A primeira parte da resposta indica que Jesus aceita César como autoridade constituída de fato. César é o poder vigente e o Estado. O que lhe pertence? S. Paulo responde (Rm 13,7): os impostos, as taxas e o respeito. Mas isso é pouco. O Estado não é uma pessoa nem um partido; é uma questão que envolve a todos. Portanto, dar a César o que é de César significa participar na organização da vida da Sociedade e do Estado, ou seja, não esquecer a política, não perder de vista nossa responsabilidade pelo bem comum, contribuir para uma ordem social justa e fraterna, votar com consciência e responsabilidade. Quem não colabora com o bem comum não dá a César o que é de César.

Dai a Deus o que é de Deus: Jesus reconhece César, mas declara também que César não é Deus. A César se deve o respeito civil e político, mas ele não pode reclamar a adoração que é própria de Deus. Por isso também César deve dar a Deus o que é de Deus. Acima dos governantes e dos poderes constituídos, os cristãos obedecem a Deus. Essa afirmação de Jesus é extraordinariamente corajosa e revolucionária.

César também deve dar a Deus o que é de Deus. Deus não está ao lado de César; está acima dele, e por isso está presente em tudo, também na política. Deus não é somente Senhor da Igreja, não é encontrado somente na missa e no culto, mas deve ser obedecido também fora da Igreja: na vida política, nos nossos negócios, no trabalho profissional. O cristão dá a Deus o que é de Deus, quando se compromete politicamente em vista da fraternidade, quando age honestamente nos negócios, quando faz de sua profissão um serviço para o bem dos outros, quando faz uso da sua propriedade individual tendo em vista o bem comum.

Evidentemente a religião e as realidades seculares são coisas distintas, mas não devem estar separadas. Com a sua ação no mundo, os cristãos consagram as realidades seculares e exercem um verdadeiro sacerdócio em seu cotidiano quando são guiados pelo Evangelho do Reino.

Dar a Deus o que é de Deus é o critério para dar a César o que é de César. O cristão respeita a autoridade constituída, mas não é um aliado cego dela. Se o poder constituído pretende ser absoluto e se colocar no lugar de Deus, o cristão tem o dever de se opor a ele. Por exemplo, tem se reforçado a pretensão do Estado de cada vez mais inventar o matrimônio e a família e redefini-las segundo seu querer. Fazendo isso, o Estado inverte indevidamente a ordem natural da relação: a família já não constrói a Sociedade, e o Estado, ao contrário, presume supervisionar e autorizar a família.

A César damos o imposto com a consciência de que o dinheiro não pertence àquele que o detém. A riqueza é, por sua natureza, fruto da terra e do trabalho humano. Portanto deve servir ao bem de todos. Infelizmente nas últimas décadas foram desviados vergonhosamente fortunas do dinheiro público e foram gastos recursos imensos no desenvolvimento e aquisição de armamentos. Se esses recursos tivessem sido aplicados com inteligência e honestidade na saúde pública, na educação, no saneamento, nas políticas públicas não só teríamos dado a César o que de César, mas César teria dado ao povo o que é do povo.

Dom Julio Endi Akamine, arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.