Buscar no Cruzeiro

Buscar

A produção de comunidades nos eSports

04 de Julho de 2020 às 00:01

Thífani Postali com Tadeu Rodrigues Iuama

Hoje, os jogos digitais são a fatia mais grossa da indústria do entretenimento. Possuem um ecossistema próprio, que envolve roteiristas, músicos, designers, programadores, publicitários, críticos, analistas financeiros, entre outros. Locutores, repórteres, comentaristas e assessores de imprensa garantem a transmissão para uma multidão de espectadores. Para se ter ideia, apenas um eSport (League of Legends, ou LoL, da empresa Riot Games) tem mais de 100 milhões de jogadores mensais.

Os eSports promovem agrupamentos em torno dos eventos milionários com uma audiência significativa. Esse fenômeno faz surgir diversos canais digitais, alimentados pela empresa ou pelos fãs. Mas podemos considerar esses grupos como comunidades?

Para Martin Buber, a comunidade existe no reconhecimento do outro como alguém complementar à sua existência e a do mundo, cujas diferenças são respeitadas a partir de uma postura ética e de reciprocidade. Levando essa discussão aos eSports, entendemos que a Riot expressa uma comunidade diferente da comunidade orgânica proposta por Buber. Isso porque, declaradamente, a empresa planejou a construção de uma comunidade cujos indivíduos cultuam os símbolos e serviços que os miram mercadologicamente.

Essa comunidade está mais alinhada à “comunidade imaginada”, oferecida por Benedict Anderson, que se refere à ideia de nação, cujos símbolos e valores devem ser cultivados por todos os seus membros, característica arquitetada pelos grupos dominantes. Diferente da comunidade buberiana, os membros da comunidade imaginada são orientados a seguir um caminho projetado, que dilui suas diferenças, ofertando-lhes uma falsa sensação de liberdade e pertencimento.

Essa falsa sensação de pertencimento se evidencia quando o usuário só pode escolher entre as personagens oferecidas pela empresa, desenvolvidas a partir do estudo de arquétipos. Milhares de usuários assumem uma identidade previamente estabelecida pela Riot. Mas quando a customização é objeto de desejo, há uma forte intenção da busca da diferenciação entre os membros.

A anulação das diferenças fica ainda mais evidente quando observamos os relatos das jogadoras que desligam os seus microfones para não sofrerem preconceito e assédio durante os jogos. O preconceito, em todos os seus aspectos, é presente e potencializado nos ambientes virtuais, uma vez que os indivíduos estão mediados por telas. Num universo com avatares pré-estabelecidos, a voz é a única característica capaz de trazer à tona as diferenças existentes na comunidade imaginada de LoL, o que provoca a quebra da ilusão da comunidade onde não “importa quem você é”.

Ao mesmo tempo, notamos um equilíbrio sutil entre a produção de comunidade e as comunidades orgânicas em LoL. Se o primeiro modelo é o predominante, pequenos exemplos de comunidades orgânicas também foram percebidos, tais como casais que se formaram a partir da experiência do jogo e grupos de amigos que se consolidaram em torno do jogo. Para nós, tais comunidades orgânicas são cooptadas pela Riot, que as usa como vitrine para apontar aos jogadores como seu produto aproxima pessoas.

Em suma, nossa intenção foi compreender em que medida o grupo de LoL se aproxima realmente da ideia de comunidade. Observamos que há potencialidade para formação de comunidades mais orgânicas a partir do encontro e convite de pessoas para participar do grupo, ao mesmo tempo em que há a intenção de uma produção de comunidade, como nomeamos produtos que, no nível mercadológico, utilizam-se das mesmas estratégias que as comunidades imaginadas desenvolvem em esfera nacional.

Thífani Postali é doutoranda em Multimeios pela Unicamp e mestra em Comunicação e Cultura pela Uniso. É professora da Uniso no curso de Jogos Digitais e membro do grupo de pesquisa MiLu. Contato: www.thifanipostali.com

Tadeu Rodrigues Iuama é doutorando em Comunicação pela Unip e mestre em Comunicação e Cultura pela Uniso. É professor da Belas Artes e membro do grupo de pesquisa MiLu. Contato: [email protected]