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A pessoa que eu tirei...

16 de Dezembro de 2018 às 00:01

A pessoa que eu tirei... Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

Você já viveu a penitência há pouco. Se ainda não se materializou na empresa, talvez venha a ocorrer no seio da família. Chegou o momento do amigo-secreto (ou oculto, como deseja uma dissidência fluminense do léxico).

Como nas imagens de símios a taparem algum orifício com as mãos, há chance elevada de o mico ser triplo. O primeiro é a contradição central do evento. Amigos são escolhas. O que torna o amigo eventualmente mais leve do que a família é o fato de que a segunda veio de acidente do destino e o primeiro de afinidade eletiva. Se houve sorteio, não pode ser meu amigo. Se eu não escolhi, impossível a fraternidade. Ninguém me pediu opinião sobre o genro na festa, pelo menos o amigo deveria ser do meu campo pessoal. Ainda sobre o termo: se é secreto não é amigo. Só amantes seriam secretas ou secretos. Ninguém pegou você em um canto e sussurrou a meia-voz: “Eu tenho um amigo e a gente se encontra quarta à tarde bem escondidos para não chamar atenção”. Não existe amigo secreto, sequer oculto. Jamais erigiram um monumento ao “amigo desconhecido”. Amigos são íntimos, todavia públicos. Jamais se nutre uma “amizade platônica” por alguém. É definitivo: não existe um amigo “secreto”.

O segundo mico está no presente. Qual a ideia de comprar apenas um mimo em vez de muitos? Escasseando a verba para todos, nada mais estratégico do que optar por um bom presente apenas. No tempo em que se amarravam cachorros com linguiças e se acendiam charutos com notas de mil cruzeiros, os presentes da classe média e alta eram suntuosos. Mães previdentes como a minha compravam coisas sem um destinatário certo, porque poderia “aparecer alguém na festa” e até o penetra deveria regalar-se com alguma dádiva aleatória. O tempo passou, o dinheiro rareou e a ceia minguou. Não é mais possível presentear todos. Solução magnânima: um único e bom presente, assim pensaram os pais fundadores do movimento do amigo-secreto. Passam-se os anos e as ideias degeneram. O presente supostamente bom vira a famigerada “lembrancinha”.

Ressalto, estimado leitor e querida leitora: o valor é irrelevante. Já escrevi sobre presentes. A grande questão não está no valor, porém no cuidado. Há o presente que tem a sua cara, personalizado, pensado com antecedência ainda que de valor simbólico. A maioria tem a cara de uma compra apressada em lojinha de menor importância a caminho do trabalho e embalado de tal forma que, se a caixa de Pandora estivesse naquele embrulho, o mundo nunca teria os males atuais. Presente ruim em embalagem pior ainda. Obrigação a contragosto de alguém que lhe entrega quase uma nota fiscal e não uma parte de si. Falta de charme, de cuidado, de elegância e, acima de tudo, falta de afeto. Não há amigo secreto e o presente mostra que também não existe presente de amigo secreto. Se era para juntar badulaques que serão repassados em breve, seria melhor manter a política de dar algo para todos, assim, ao menos, o castigo seria coletivo.

O primeiro mico tapou as orelhas, o segundo fechou os olhos. O terceiro deveria calar a boca. A arte da revelação está perdida. O talento retórico esvaneceu-se. Humor é algo raro e especial nas telas, palcos, empresas e famílias. O impossível amigo-secreto foi feito. O irrelevante presente foi adquirido. As pessoas estão em círculo e a jaula do mico ganhará novo habitante: a revelação. “A pessoa que eu tirei está nesta sala” e brota um “ahhh” geral com risos leves disfarçando certo nervosismo. “A pessoa que eu tirei é muito especial” e o clichê raso é acompanhado de outro: alguns se levantam se identificando como o ser “especial”. Mais risos nervosos e, se houver alguma gargalhada sincera, é certo que a bebida já foi liberada há algum tempo. O que seria de festas assim sem o elixir etílico, fazendo a química que o conteúdo não consegue?

A revelação segue com a poesia criativa de uma planilha Excell. Só falta um PowerPoint com bastante texto em letras miúdas para completar o clima de reunião. Os astros conspiram: a pessoa que você nunca viu ou tem franca ojeriza é quem você tirou ou foi tirada por você.

Difícil ser talentoso ou divertido na liturgia do amigo-secreto. Parece-me sempre como jantar em classe econômica de voo internacional: não é possível ser elegante ou feliz, apenas é meritório tentar sê-lo. No amigo-secreto, nem todos tentam. Após as primeiras revelações e repetições de piadas de pastelão B, muitos já manifestam a cara de tédio, vasculham mensagens de celular. Um risco em empresas, ouçam meu conselho: haverá muitas fotos e é um evento profissional, evite ficar muito tempo olhando suas mensagens, você pode revelar o que todos estão sentindo, mas disfarçam, e será imortalizado na foto como aquele, o único, que não estava atento ao que ocorria. Evite virar meme natalino e faça cara de animado. Se for difícil, o vinho é uma dádiva intransponível.

Para não ser tomado por um Grinch, reafirmo meu amor por esta época, talvez com melancolia ácida. Quero verdadeiros amigos, sem cenas, de preferência sem nenhum presente além do grande dom da presença real. Quero gente não mexendo no celular ao dizer que sou especial. Quero mais conteúdo e menos fotos. Mais abraços emocionados e menos onomatopeias retóricas. Quero Natal de verdade com gente de verdade. Bom fim de semana, boas festas com gente real para todos nós.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.