A outra volta do parafuso
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Leandro Karnal
Os norte-americanos têm duas forças contraditórias e complementares. Por um lado, a terra do indivíduo livre e empreendedor, do homem da fronteira e do crescimento que eles acreditam ilimitado para quem possuir energia, inteligência e foco, sem as amarras do Estado que tanto infernizam o mundo ao sul do Rio Grande. Por outro lado, os EUA são o país que lutou contra os grandes bancos (governo Andrew Jackson 1829-1837), que formulou uma forte lei antitruste (Lei Sherman, 1890) e do crescimento estatal no longo período do partido democrata de F. D. Roosevelt e H. Truman (1933-1953). Relações ambíguas, ou dialéticas, se preferirem: muitas das lutas contra grandes empresas de magnatas eram para... permitir aos pequenos a condição de liberdade que a concentração de capital poderia dificultar. No fundo, tudo está sempre no velho debate que já aparecia na época dos pais fundadores do século 18: o ideal de uma democracia de pequenos fazendeiros ou de cidadãos livres e sem um Estado muito forte ou sem empresas muito grandes. Mas resta o fato: e quando a capacidade de um empreendedor ou de um grupo é tamanha, sua aliança com o poder é umbilical, e a soma disso faz com que cresça de forma gigantesca? Como lidar com o fato de que a democracia pretende a igualdade jurídica em um universo humano que nasce da desigualdade de capacidade enorme entre os indivíduos?
Guardemos a primeira ideia: desconfiança do poder das grandes empresas. Somemos uma segunda ideia, que leva em história o nome de “síndrome de Frankenstein”. Existe um medo de que as máquinas ou seres criados pelos humanos venham a atacar a própria humanidade. Mary Shelley (1797-1851) criou a angustiada e violenta criatura animada pelo doutor Victor Frankenstein. Um dia seremos dominados por robôs, ou computadores, ou pelos algoritmos, ou pelos programas de identificação fácil da China, ou pelos aplicativos para envelhecer o rosto da Rússia, ou pelo Vale do Silício, ou pelos liquidificadores. As máquinas dominarão tudo, como vemos em “O exterminador do futuro” (“The terminator”, direção de James Cameron, 1990). Desde aquela data, o ator Arnold Schwarzenegger precisou ir e voltar de um mundo dominado por novos frankensteins para eliminar ou ajudar nossa combalida humanidade.
Junte, agora, a primeira ideia (medo de grandes trustes) e o segundo medo (medo da perda da humanidade diante de máquinas) e teremos o livro de Franklin Foer: “O mundo que não pensa -- A Humanidade diante do perigo real da extinção do Homo Sapiens” (Rio de Janeiro, LeYa, 2018. Tradução de Debora Fleck da obra “World without mind”). A proposta do livro é muito interessante e causou sucesso no mercado dos EUA.
Estaríamos abrindo mão da capacidade reflexiva e crítica para gigantes como Apple, Google e Facebook. Em nome de buscas de informações, acesso a produtos ou relações sociais, os consumidores estariam cedendo sua capacidade de escolher ou de distinguir algo fora dos cardápios oferecidos. O nome Amazon consagra o rio mais volumoso do mundo e o logo indica uma seta de A a Z (fui verificar depois de ler isso no livro). Google deriva de googol (o 1 seguido de 100 zeros) usado em matemática para valores inacreditáveis, mostrando uma pretensão maior do que uma simples gigante do petróleo do passado. Os dados vão além das curiosidades de marcas e fazem pensar seriamente em tudo. O mais interessante do livro é a visão do autor, um liberal, sobre o Vale do Silício. Você nunca mais verá informações sobre o epicentro das nossas transformações de paradigmas tecnológicos com o mesmo olhar.
Quem mais classificaria as pessoas de lá como tendo uma “visão medieval de criatividade?”.
Sempre é importante supor que o objetivo maior de uma grande empresa não seja a sua felicidade, mas os seus recursos financeiros. Reiteradamente desconfio de teorias conspiratórias (o que não é o caso do texto de Foer) e tenho um otimismo quase inato sobre a rebeldia humana que supera totalitarismos políticos e de pensamento.
Sempre existe uma “outra volta do parafuso”, como no texto de Henry James que intitula a crônica. Se quiserem um argumento melhor, em um mundo em que todos pagam para que as grandes empresas forneçam produtos e informações controladas, surgirá um empreendedor que fará uma opção de venda de informações fora das grandes empresas. Em outras palavras, na dinâmica do nosso capitalismo, quando muita gente lucra com agrotóxicos, surge a opção (cara, aliás) de alimentos orgânicos.
O texto faz pensar e eu o recomendo fortemente. Há espaço para o humor: ao procurar as datas do nascimento de Mary Shelley ou do ano do filme “O exterminador do futuro” (que eu não sabia de cor, ao contrário das outras datas que citei aqui), encontrei-as no... Google. Em resumo, talvez o livro já venha tarde demais, já precisamos de Google e da Apple para fazer um texto de crítica às empresas. Se você desejar, aliás, o livro “O mundo que não pensa” está nas grandes livrarias ou... na Amazon, de A a Z... Em resumo, querida leitora e estimado leitor, o monstro criado pelo dr. Frankenstein já assumiu o cargo de CEO do seu cérebro. Não sabe o significado de CEO? Já sabe onde procurar e dar mais uma volta no parafuso. Boa semana para todos nós.
Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.