A mesa cambaleante
Crédito da foto: Reprodução Internet
Edgard Steffen
O pediatra não deve agir como o homem que comodamente calçou a mesa.
(Do autor do poema A Mesa)
Remexendo alfarrábios em meu escritório, encontrei recorte de velha revista da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP, anos 70). Nele, o poema “A mesa”. O recortado não identifica o autor. Acredito seja diretor da SBP, porque definiu a poesia como seu presente de fim de ano aos associados e incluiu o conselho que ilustra esta crônica.
Costumo meditar sobre o que leio. Sejam livros, jornais ou artigos de medicina. Cinema e teatro assisto para divertir. Puro escapismo. Adoro cinema, tanto no telão quanto na telinha. Por comodidade assisto aos filmes nesta última. Detesto excessos nos efeitos especiais, excessos de cenas de sexo e violência exacerbada. Não assisto filmes de terror nem ficção científica. Aos cronistas de cinema perdão por confessar, salvo honrosas e magníficas exceções, detesto filmes de arte.
“A mesa” trouxe-me à memória La vita è bella, dramática comédia italiana muito bem interpretada e dirigida por Roberto Benigni. Levou o Oscar 1998 de melhor filme estrangeiro, melhor ator (Benigni, indiscutível) e melhor trilha sonora. Derrotou “Central do Brasil”, de Walter Sales, enredo sugerido por carta de presidiária a um dos produtores do filme. Chato foi assistir Gwyneth Patrow, no insuportável “Shakespeare Apaixonado”, levar o prêmio de melhor atriz, derrotando a espetacular Fernanda Montenegro.
Em “A Vida é bela”, o judeu Guido Orefice e o filho Giosué são levados, separadamente de Dora (esposa/mãe), para campo de concentração na Alemanha nazista. Guido faz o filho acreditar estarem de férias, participando de um jogo ultrassecreto, cujo prêmio final seria um tanque M4-Sherman de verdade. Para ganhar a competição, não poderia chamar pela mãe, chorar, aparecer na frente daqueles homens abrutalhados que falavam língua incompreensível. Fingindo saber alemão, traduzia as falas dos guardas, a seu bel prazer, para mostrar a Giosué -- por outros prisioneiros chamado à realidade -- que o sofrimento era jogo de aparências para iludir os postulantes ao grande prêmio. Tudo não passava de “tarefas” que lhes garantiam “pontos”.
Interessantes coincidências nos nomes. Em “Central do Brasil” Fernandona desempenha papel da professora Dora que ganha dinheiro escrevendo cartas para analfabetos que desejam dar notícias aos parentes distantes. Por força de acidente e peripécias, foge com o Giosué brasileiro (Josué menino ator Vinicius de Oliveira) em direção ao norte deste imenso Brasil, para lugarejo onde estaria o pai do menino. Este road-movie tupiniquim é considerado um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Tanto o filme como os atores ganharam importantes premiações internacionais, mas não foram oscarizados. Vale a pena assisti-lo.
Não tem campo de concentração nem fornos a gás para o “último banho”. Mas não pinta como bonita a vida dos que sofrem nas centraisdobrazil, nos paus-de-arara e caminhões a rodar em precárias estradas e cruzar vilarejos pobres. Os concentrados nos campos da SS não entendiam a língua dos guardas; eram obrigados a ouvir besteirol de um pseudotradutor. Os daqui, condenados à pobreza e ao analfabetismo, precisam das oportunistas Doras que nem sempre remetiam as cartas encomendadas.
Para encerrar, redistribuo o poema:
A mesa estava cambaleando.
O menino sentou-se à mesa
com papel e lápis.
Fez uma flor,
fez uma casa,
fez um sol (com boca e olhos),
fez uma árvore (cheia de frutinhas);
fez um pássaro (na árvore).
A mesa estava cambaleando.
O homem sentou-se à mesa.
Destruiu a flor,
amassou a casa,
tapou o sol,
derrubou a árvore,
matou o pássaro.
Dobrou o papel, em quatro,
e calçou a mesa.
Que o exercício pleno da Democracia endireite o móvel sem amassar a vida bela de nossas crianças. Que elas possam crescer holisticamente sem ilusões pirotécnicas nem escreventes e tradutores oportunistas. Amadurecimento sadio, teu nome é Educação!
Edgard Steffen é escritor e médico pediatra e-mail: edgard,[email protected]
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