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A lógica das maldições

06 de Outubro de 2019 às 00:01

A lógica das maldições Crédito da foto: Kim Watson / AFP

Leandro Karnal

A origem é incerta, pois a aura de mistério deve cercar esse tipo de coisa. Conta-se (o sujeito oculto também acrescenta credibilidade!) que era o ano de 1811. Os EUA viviam alternando períodos de intenso conflito com tréguas duramente acordadas com os indígenas com quem faziam fronteira. Ao fim de um encontro tenso e de tiros disparados entre o general William Henry Harrison e os líderes Tecumseh e Tenskwatawa, o primeiro dos nativos havia morrido.

Anos depois, em 1836, o “profeta” Tenskwatawa estaria (repare o condicional de quem não tem certeza do que diz) posando para um retrato quando ouviu pessoas especulando sobre o resultado da eleição presidencial daquele ano. Harrison concorria contra o democrata Martin Van Buren. O líder nativo interrompeu a conversa afirmando que seu antigo desafeto perderia o pleito daquele ano, mas ganharia o próximo. Foi além: cravou que ele morreria na presidência, como uma vingança do Grande Espírito, irritado desde a derrota indígena. Como se não bastasse, prosseguiu: todos os presidentes eleitos a cada 20 anos a partir de 1840 morreriam no cargo.

Os mais incrédulos dos leitores e leitoras devem estar com um sorrisinho nos lábios, desconfiando da bobagem contada. Mas, pasmem, tudo o que foi previsto aconteceu. Harrison perdeu a eleição de 1836, elegeu-se em 1840 e morreu com pouco mais de um mês no cargo, vítima de uma doença pulmonar. Lincoln, eleito em 1860, foi assassinado no início de seu segundo mandato. Garfield, que chegou à presidência em 1880, faleceu no ano seguinte de complicações ligadas a uma tentativa de assassinato. Mckinley (eleito em 1900) foi assassinado; Harding (1920) teve um ataque cardíaco fulminante; Roosevelt (1940) morreu no fim da guerra, de AVC; Kennedy (1960) foi baleado e morto em 1963. Nervoso? Repensando sua incredulidade? Aparentemente a maldição perdeu força nos anos 1980: Reagan foi gravemente baleado, todavia sobreviveu.

Outra história fantástica sobre o mesmo tema, presidentes americanos, circula há décadas, comparando dois assassinatos famosos: o de Lincoln e o de Kennedy. Ambos foram eleitos (com um século de diferença) para o congresso no ano de 46 e para a presidência no ano 60. Ambos têm sete letras no nome e seus assassinos tinham três nomes, os dois pistoleiros eram sulistas. O sucessor de ambos era um Johnson. E vai longe!

Moral da história: nenhuma! Apenas a de que nosso cérebro adora fazer conexões e criar algum tipo de explicação metafísica para coincidências. Se o leitor, agora convencido de que o mundo é repleto de maldições e que vale comprar algum amuleto protetor, souber que a história da maldição foi aventada nos anos 1930 pela revista Acredite se Quiser, um sucesso de vendas baseado na exploração de coisas insólitas ou falsas? Manteria sua opinião? E se tentássemos encaixar a morte de Zachary Taylor, que morreu no exercício da presidência em 1849, tendo sido eleito no ano anterior? Como ficaria o padrão? E se soubéssemos que, desde os anos 1830, quase todo presidente norte-americano sofreu alguma tentativa de assassinato? Não seria mais correto perceber que apenas se trata de um cargo cheio de riscos em um país que flerta com a violência como solução política?

Que no caso da comparação Lincoln-Kennedy alguns dados são meias-verdades, que também é possível traçar oposições entre ambos: um era republicano, outro democrata; um foi alvejado na rua, outro num teatro; um enfrentou uma guerra civil, outro não. Reparemos na imensa tentação de ligar os pontos, que muitas vezes nem sequer existem. Nem tudo tem lógica na História. Muito menos moral. O sentido é sempre dado pelo intérprete dos fatos.

Tive um amigo que fazia um veredicto duro sobre pensamento mágico e tentativa de estabelecer conexões aleatórias: “Má formação”, sentenciava. Não consigo ser tão duro. São tentativas de sentido e temos sede de lógicas biográficas e históricas. Sempre é importante, já recomendei, uma vez por ano, ao menos, ler o conto “A cartomante”, de Machado de Assis. O ceticismo do carioca é um antídoto com força para nossos devaneios. Começou a ler profecias? Acreditou que o dia 13 pode nublar seus planos se cair na sexta? O sinal fecha exatamente porque você está atrasado? O céu abriu em raios fúlgidos e as nuvens evaporaram porque sua filha casará hoje? Seu semblante foi iluminado pela lógica da coincidência ou surgiram lágrimas pelo bom tempo “justamente” no dia em que mais você precisava? Leia Machado, muitas vezes, avalie o final com método. Pode ser que as coisas continuem sendo mágicas, porém há uma chance de a sua expressão em português melhorar.

Não há maldições reais, inexiste sorte ou azar, a vida não apresenta um sentido claro e predefinido, o destino é não existir destino, existência antecede toda essência e as relações de causa-efeito encontram-se em planos verificáveis. Seria bom que tudo tivesse um vetor, uma seta, uma direção. Infelizmente, presidentes serão assassinados em anos aleatórios e nossa vida segue sem enredo prévio. Boa sorte para todos nós na semana que se inicia.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.