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A Lei de Lamec

13 de Outubro de 2019 às 00:01

Dom Julio Endi Akamine

Todos os dias somos surpreendidos com o horror e a tristeza da violência gratuita, da criminalidade crescente e do sofrimento de suas vítimas. A violência não é um tema para a reflexão, mas uma realidade na qual todos nós estamos envolvidos. Ela nunca é solução para os conflitos; é uma mentira contrária à verdade de Deus e à do homem.

No Gênesis (Gn 4,1-8), temos a história de Caim e Abel que não é só um relato de um passado distante. Infelizmente descreve, em linguagem narrativa, o que tem se repetido: o irmão que mata seu irmão! Sim, a grande tragédia da violência consiste na morte do outro que não é somente um semelhante e sim um irmão. Por isso, tanto a vítima quanto o autor da violência são, a seu modo, destruídos por ela. Toda violência é sempre uma negação da fraternidade, e todo homicídio é fratricídio.

No relato bíblico, Deus dirige sua palavra a Caim para demovê-lo do pecado contra Abel. O fato de Deus não ter olhado para a oferta de Caim não significou, portanto, a sua rejeição. Se Deus tivesse rejeitado Caim, se não o amasse profundamente, não teria dirigido a sua palavra a Caim. Prestemos atenção: Deus não falou com Abel; falou com Caim!

O que Deus falou? Falou-lhe sobre a fraternidade que o unia a Abel: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante (contra o teu irmão)? Se praticares o bem, sem dúvida poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas tu deverás dominá-lo” (Gn 4,6-7).

Como é acertada esta Palavra! “Se praticares o bem, poderás reabilitar-te”. A mera punição não servirá para reabilitar as pessoas se estas não praticarem o bem. Sem a prática do bem, a punição é sofrimento vazio que aguarda a oportunidade da vingança; sem a prática do bem as leis punitivas só serão respeitadas na medida em que os delitos não sejam descobertos; sem a prática do bem, a penitenciária não passa de um local de enfurecimento. Sem vencer o mal com o bem, a violência nunca será superada em nós e nos outros.

Deus falou a Caim, mas Ele continua repetindo a nós: “se procederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te”. Infelizmente Caim não deu ouvidos à advertência de Deus. Continuou cultivando o ódio e tramando contra o seu irmão até que o pecado, como fera que espreita de tocaia, atacou Caim, e este matou o seu irmão. Com efeito, o pecado é como a fera que arma emboscada e ataca para nos dominar e nos escravizar.

Não há alternativa: fazemos o mal e permitimos sermos presas do pecado ou praticamos o bem e nos reabilitamos.

O pecado de Caim desencadeou a espiral da violência. Lamec foi um dos filhos de Caim e introduziu a poligamia ao se casar com duas mulheres, Ada e Sela. Fez crescer a violência desmedidamente ao declarar a “lei da vingança”: “Escutai as minhas palavras: Por uma ferida matei um homem, e por uma contusão matei um menino. Se Caim será vingado sete vezes, Lamec será vingado setenta vezes sete” (Gn 4,23-24).

De novo o relato do Gênesis não descreve uma triste realidade do passado, mas nos adverte contra um perigo muito atual. A lei de Lamec é a lei da vingança. Por sua própria natureza, a vingança é descontrolada e desenfreada. Deixada a si mesma, a vingança não conhece proporção entre dano e punição. Qualquer mínima ofensa provoca uma vingança injustificada. Quantos hoje sofrem privação de liberdade por ter reagido sem controle a uma ofensa mínima!

Quem nos salvará do Lamec que mora dentro de nós? Mais uma vez, não basta só evitar a vingança. Importa praticar o bem. É isso que pode nos reabilitar.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.