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A ira das pombas

06 de Setembro de 2020 às 00:01

A ira das pombas Crédito da foto: Reprodução / Internet

Leandro Karnal

Os franceses advertem que devemos temer a ira das pombas (Craignez la colère de la colombe). Como todo ditado tradicional e popular, é uma mistura de aguda sabedoria e de senso comum. Há dois caminhos interpretativos.

O primeiro remete às pessoas que se controlam muito, são normalmente pacíficas e dadas a doces arrulos. Irritadas, acumulam dor e não respondem. A represa da raiva vai se enchendo até o limite do insuportável. Enfim, quando a doce pomba não aguenta mais, o ódio extrapola os limites do razoável e ela abre mão do equilíbrio e, tão doce quanto fora ou pretendera ser, transforma-se em uma harpia violenta.

O segundo sentido pode incluir a docilidade quase impotente das aves. São mansas porque aparentam ser fracas. É a humildade não derivada de prática moral, todavia incapacidade de ataque. Há pessoas que buscam o “deixa disso” nas brigas por fraqueza, o que as distingue do autêntico pacifista. Possuem o mérito do realismo.

As pombas não possuem a força das águias. A plumagem é inferior à do pavão. O canto não se aproxima do rouxinol ou do uirapuru. O voo não tem a majestade épica do condor. Não edificam ninhos caprichosos como o joão-de-barro ou imponentes como os da cegonha. Claro, o voo de uma pomba não é o bailado gracioso do beija-flor. Todas essas comparações são humanas e não devem afetar sentimentos ornitológicos. E, como projeção antropomórfica, sinto as pombas ressentidas.

Temam a cólera das pombas. Acautelem-se com a raiva de quem se sente fraco e é atingido por comparações. Cuidado com a dor do bando que congrega tantos ressentimentos, sonhos frustrados e desejos reprimidos. “Por que eu não tenho admiradores como o falcão?”, pia a pomba, pesarosa. “Por que a live do canário teve tantos seguidores e a minha, nenhum?” “Por que eu sou menos do que a ave-do-paraíso?” Como Esopo, crio animais que refletem para uma lição moral. A utopia zoológica serve a muitos para correção da distopia humana.

Os animais não são ressentidos. Os problemas deles são objetivos. Comer, acasalar, construir ninhos e sobreviver. Bichos nunca são de esquerda ou de direita. As sardinhas não contam piadas de portugueses e a relação dos dois grupos é antiga. Os grupos podem se enfrentar, jamais constituem ideologia e propaganda. A alva coruja jamais frequentou reunião racista sobre os urubus. O delgado pardal não pensa que o robusto avestruz é destituído de amor-próprio. O colibri se abastece de doce néctar e a seriema tem as cobras como prato mais desejado; nenhum se vangloria sobre a dieta alheia.

Nossa projeção humana é universal. Machado de Assis disse que o vaga-lume inveja cada estrela que contempla (Círculo Vicioso). As estrelas, pequenas no céu, jogam seu azedume sobre a Lua. Nosso satélite contempla o Sol com ciúme. E o imenso Sol afirma pesaroso: “Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”. A figura poética é linda. É pouco provável que os insetos se projetem nas estrelas. Somos nós que vivemos imersos no cego desejo do outro e projetamos sobre o humílimo vaga-lume nossos anseios.

Contrario o ditado inicial. As pombas não apresentam cólera. Elas não maceram fel pelo ato de existir. Talvez seja um tipo específico de consciência. É provável que sejam auxiliadas pela inexistência de redes sociais entre as emplumadas. Não podendo curtir o perfil umas das outras e jamais tendo fotos da vida extraordinária de outra pomba em praça distinta, vivem ali, no aqui e agora contínuo.

Projetamos sem cessar. Fazemos isso sobre os animais, insetos e elementos astronômicos. O pior é que projetamos sobre os outros. Sonhamos grandezas e, como um falso pássaro, Ícaro, caímos com frequência. As araras-vermelhas, por serem vermelhas, desconfiariam dos papagaios em verde e amarelo. Motivo? Cores diferentes...

Pombas são metáforas voadoras. Raimundo Correia imaginou a saída e o retorno de cada uma dessas aves ao pombal. A casa delas seria como o coração humano, segundo o autor maranhense. Um a um, como aves, os sonhos disparam no azul da adolescência. Melancólico, o poeta aproxima pombas e sonhos: “Mas aos pombais as pombas voltam / E eles aos corações não voltam mais”. Discordo. Fico mais com a crítica brincalhona de Alexandre Ribeiro Machado (sob o pseudônimo de Juó Bananère). Os sonhos continuam sendo aves, “son tutto pombigna”, no patois da personagem. Talvez se tornem coisas menos poéticas, galinhas provavelmente, que querem o conforto do galinheiro e a comida garantida. Alguns humanos envelhecem com pesadelos de abutres. A internet fez todos sonharem que são majestosos como o albatroz. E as pombas? Continuam estúpidas e sujando tudo, como o herético Fernando Pessoa chegou a atacar a mais solene de todas: o Espírito Santo, que ele insulta salvando o grupo columbino: a Terceira Pessoa da Trindade seria a única pomba feia do mundo (“Menino Jesus”).

Acho que seria um bom jogo de salão para animar festas. Que ave você seria na família ou no grupo do escritório? Mal emito a sugestão e já imagino a multidão de sorrisos irônicos, imaginando o chefe e a sogra. Talvez, neste desafiador ano de 2020, deveríamos todos imitar um pássaro mítico: a fênix. O circo está pegando fogo (ou já pegou) e precisamos renascer e voar alto sobre as labaredas. Boa semana para todos os pássaros do planeta.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.