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A hora e a vez do trânsito

21 de Setembro de 2018 às 08:48

 

Por mais que se fuja, o destino está traçado. Muitos suplicam em vão, mais dia menos dia chega a nossa hora. Deixamos a família, os amigos cheios de temor, porém acontece com todo mundo. É a verdade da vida e partimos para enfrentar... o trânsito!

Quem não tem medo do desconhecido? “Desconhecido” são outros motoristas. Será que existe vida civilizada depois que se entra no carro e se vai para as ruas? É possível que sim, mas há dúvidas. Há quem tenha tido experiências transcendentais e na hora “H” viram uma luz branca ofuscante vindo em sua direção, cegando os olhos até... o miserável do outro carro baixar os faróis. Por vezes luzes pequeninas surgem de repente: -- Freia! Freia que vai bater!

Coisinhas vulgarmente conhecidas por seta não parecem ter utilidade: -- Para quê ligar o pisca? O sujeito que adivinhe quando eu vou virar. Dirigir no trânsito pode ser uma experiência de quase morte. De repente, tudo pode mudar e nos vemos obrigados a dar uma parada brusca na vida metendo o pé no freio até o nariz encostar no para-brisas.

O trânsito tem razões que a própria legislação desconhece. Particularmente dirigir ao celular: às vezes a ligação cai junto com o poste. Pá!

Motociclistas irresponsáveis costuram no trânsito para depois serem costurados nos hospitais. Entregadores de delivery surgem vindos de não se sabe onde. Passam tão rentes aos carros que dá para saber se a pizza tem borda. E muitas vezes, sem encomendarmos, encomendas surgem no capo do carro invariavelmente junto com a cobertura de entregador. Tem também os coletivos que levam gente. Levam espelhos, a lataria, postes, levam tudo! Explicação? Nosso apego aos carros é tanto que se o motor “morre” tem gente que faz boca a boca no escapamento para reanimar.

E qual é o coletivo de carros? E n g a r r a f a m e n t o!

É nas ruas que a criatura-motorista se revela. O pai de família, o empresário, a dona de casa, o jovem, todos risonhos e gentis, se transformam. Possuídos pelo Demônio da Pressa, estão sempre atrasados. E o que mais se ouve é: -- não adianta sair mais cedo, ou: -- eu tenho horário, viu?! Aí vale a máxima: de frente ninguém bate e nas ruas cabem três.

Salve-se quem puder. No semáforo o amarelo desencadeia um reflexo inexplicável de aceleração nos motoristas. Pressa! É preciso passar antes do sinal fechar. O engarrafamento é o castigo do motorista que se pergunta: Por que eu, Senhor? IPVA do céu nos acuda! É o MMA -- Muitos Motoristas Apressados -- do trânsito das cidades. Os dedos em riste viram armas, escapam palavrões cabeludos, punhos fechados, socos no painel, na lataria. Fechadas. Cuspidas. Rosnados. Olhares homicidas. A língua cresce, os olhos ficam sombrios, presas enormes saltam da boca e pronto: nasceu o Motorista no trânsito, a fera que rosna em cilindradas. Sai da frente.

“Este carro é de Jesus!” Alertam alguns adesivos sobre quem é o proprietário, ou: “Eu freio para animais” -- um aviso, uma esperança que (talvez?) alguns parentes sejam poupados. Dizemos que os carros são as carruagens modernas, mas parece que alguns cavalos saíram do motor para o volante. A insensibilidade no trânsito é tanta que quando ocorre um acidente grave com vítimas os donos têm socorrido os carros.

É preciso repensar o trânsito das cidades. O maior medo do motorista cansado, abatido que sobreviveu ao trânsito ao voltar para casa é ouvir sua mulher avisar: -- “Mor, amanhã voltam as aulas”.

“Tempos estranhos esses, os quais meus antigos líderes viraram bandidos e os bandidos líderes”.

José Feliciano é escritor, roteirista de humor e mistério, criador de pit bulls mansos de gaiola e médico quando ninguém estava vendo.