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A força superior

11 de Março de 2020 às 00:01

A força superior Crédito da foto: Luiz Setto / Arquivo JCS (7/1/2020)

Leandro Karnal

Logo após ter sido criado, o primeiro casal da humanidade recebeu o controle da natureza. Assim afirma o final do capítulo inicial do Gênesis (Gn 1, 28-30). Dominar animais e plantas e multiplicar-se sobre a terra: ordens divinas dadas a Adão e Eva. Fundamentalistas religiosos dos EUA já usaram esses trechos para justificar caça a ursos, por exemplo.

Nossa vaidade de donos do mundo só cresceu. Ao impulso religioso, vem somar-se o orgulho da técnica crescente. A vaidade antropocêntrica não conhece limites. A natureza, no entanto, dá respostas distintas. A fantasia do orgulho sofre, com frequência, choque de realidade.

Tendo vivido uma chuva devastadora em São Paulo no dia 10 de fevereiro, pensei nos elementos naturais e sua força. Maior cidade da América do Sul, a metrópole reluzente do Brasil foi detida pela água insípida, inodora, incolor e... fatal. Carros deslumbrantes, túneis imponentes, avenidas vastas: tudo parado e afogado em poucas horas de chuva.

Pior do que o vivido em São Paulo foi a nevasca de 11 a 14 de março de 1888 (Great Blizzard of 1888). Paralisou Nova York e grande parte da Costa Leste dos EUA. Ventos fortes e neve acumulada passando de 1 metro em muitos lugares. Encanamentos estourados, trens parados, desabastecimento geral e centenas de mortos. O Grande Furacão Branco (como a imprensa o denominou) fustigou áreas densamente povoadas. O gelo permitiu que muitas pessoas passassem a pé sobre o rio do Brooklyn para Manhattan. Incidente tragicômico: um senhor segurou-se ao poste para evitar ser carregado pelo vento. Sem querer, aproximou demais a boca do metal e ficou grudado. Afastou-se com dor e deixou no poste seus dentes postiços. No dia seguinte, voltou ao local e a dentadura lá estava, congelada.

Trago à memória o incidente de 1908, em Tunguska. Um objeto celeste caiu na Sibéria e devastou mais de 2 mil km² de florestas. Se tivesse caído em uma grande cidade, estaríamos falando do maior desastre da história. Como reagir a eventos dessa magnitude, como a explosão dos vulcões Krakatoa (1883) e Santorini (há mais de 3,6 mil anos) e do Vesúvio que soterrou várias cidades no ano de 79 d.C.? Há resposta a violentos terremotos e tsunamis? Sim, países avançados como o Japão podem diminuir muito os danos dos desastres naturais; porém, como vimos recentemente, a mesma tecnologia que ajuda a evitar destruição maior edifica reatores atômicos que multiplicam problemas (Fukushima, 2011). Toda a sociedade californiana se prepara, há anos, para o Big One, o terremoto apocalíptico que mostrará todo o potencial devastador da falha de Santo André.

Falamos de chuvas, erupções, nevascas, terremotos e tsunamis. Menos famosas, as mudanças climáticas de longo prazo são, igualmente, impactantes. A Idade Moderna, por exemplo (séculos 15 ao 18), foi acompanhada de um resfriamento parcial, uma pequena Idade do Gelo, que tornou áreas do norte europeu inadequadas para a agricultura, aumentando a fome em longos e crescentes invernos. Os anéis de árvores centenárias, pedaços profundos de gelo e de sedimentos, marcas das geleiras nas rochas e outros registros permitem detectar aumentos de chuvas e de variações térmicas. Existe uma “longa duração” da natureza que atua sobre a história e foi indicada pelo historiador Fernand Braudel.

Eis os orgulhosos humanos reduzidos a marionetes irrelevantes quando fatos naturais se pronunciam. Ganhamos o controle do Éden. Ninguém imaginava que fora daquele lugar seguro haveria tantas falhas geológicas e tanta chuva. Nossa inocência se foi. As nevascas impedem a nudez primitiva.

Há uma curiosa vaidade em meio aos desastres. Quando o mundo foi submerso em águas na narrativa bíblica, teria sido por causa do comportamento humano. Sim, salvaram-se animais na Arca. Alguns... Porém, milhões de outros foram afogados como castigo pela... maldade humana. Hoje que os cientistas traçam argumentos inequívocos sobre a responsabilidade da nossa civilização sobre o aquecimento global. De novo, agora por causas verificáveis e demonstráveis, tudo vai por água abaixo pela responsabilidade do Homo sapiens. Toda vez que o mundo acaba ou ameaça acabar, é culpa nossa. Desta vez, sabemos, é mesmo culpa nossa.

Vencemos rios, fizemos represas, eliminamos males, rasgamos montanhas e pisamos na Lua. Diante de uma onda gigantesca, de uma terra agitada ou de um vulcão explodindo, exibimos, em pleno mundo tecnológico, reações semelhantes aos que os habitantes de Herculano, Pompeia e Estábia demonstraram naquele agosto fatal. Temos internet e serviços de celulares. Chega o temporal, a água sobe, e ficamos bem parados em casa, olhando a água levar tudo, assustados, tão impotentes como nosso ancestral no fundo de uma caverna escura que observava uma força que o excedia. Diferentemente do homem do Paleolítico, podemos ver imagens em tempo real do desastre crescendo. Assim, morremos bem mais informados. É preciso ter esperança e buscar um lugar alto, por vezes.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.