Buscar no Cruzeiro

Buscar

A enxada que plantou sementes de vida

22 de Setembro de 2020 às 00:01

A enxada que plantou sementes de vida Crédito da foto: Vanderlei Testa

Vanderlei Testa

Acredito que uma das maiores coleções de etiquetas de enxadas do Brasil está comigo. Sua origem é da Fábrica de Enxadas Nossa Senhora Aparecida, fundada em Sorocaba em 1937. A compra dos fundadores da empresa tem registro no cartório e publicação oficial em 1947, no jornal Cruzeiro do Sul. Há uma cópia em meus arquivos. Coisa de colecionador? Certamente, não é. Mas, pode ser para os colecionadores de peças raras ou para uma faculdade de agronomia. Foi um presente que ganhei há mais de 40 anos. Mantenho guardado como relíquia da história da industrialização de Sorocaba, pois as enxadas plantaram sementes de vida.

Quando escrevemos em 1984 (Vanderlei Testa e Sérgio Coelho) o livro “A Enxada que plantou uma siderúrgica”, tivemos a oportunidade de conversar com o diretor comercial Remo Ópice e com o dono da fábrica de enxadas Luiz Pinto Thomaz. As marcas das enxadas em etiquetas, além de serem modelos dos concorrentes, representavam o que a concorrência produzia. Naquela época, muitos empresários simplesmente compravam as enxadas da fábrica de Sorocaba e inseriam as suas etiquetas para venderem em seus Estados de origem. A original Enxada Zap (Quatro Paus, do baralho), Coringa e Nossa Senhora Aparecida, três das mais tradicionais do Brasil, eram forjadas nos marteletes da rua XV de Novembro. Esse local hoje abriga a Escola Leonor Pinto Thomaz, nome da mãe do fundador.

Acompanhei durante alguns anos a produção de enxadas na fábrica da rua Padre Madureira, nas dependências da Metalúrgica NS Aparecida. Era artesanal. Os aços produzidos no forno da Aciaria chegavam após laminados, para serem malhados, como se diziam, àquelas peças aquecidas em mais de mil graus. O martelete era impulsionado na máquina que batia com força na peça em alta temperatura até espichar longamente em dimensões da enxada. Tudo dependia da habilidade dos operários e de suas ágeis mãos em produzi-las. Mais de três mil peças por mês. Eram feitas em três turnos de oito horas.

Uma imagem que ficou na memória em cada passo do processo. Relembro com detalhes a beleza do aço incandescente das enxadas sendo finalizadas e temperadas, acabadas e com suas etiquetas e embalagens. Caminhões e trens partiam de Sorocaba para levá-las a todas as partes do imenso território nacional. Em tempos de eleições, candidatos apareciam para comprar as enxadas para serem etiquetadas com os seus rostos e nomes. Seriam entregues como brindes aos eleitores agricultores e lavradores. Cheguei a ver a etiqueta do candidato ao governo do Estado de São Paulo, Ademar de Barros. Fato pitoresco contado pelo próprio Luiz Pinto Thomaz é que ele só pagou depois que ganhou as eleições e por cobrança pessoal do mesmo empresário que cobrou insistentemente, pois dependia do pagamento para continuar produzindo. Nada era de graça.

Escrevo olhando as diferentes etiquetas de enxadas, de marcas diferentes. Encontro nomes curiosos. Muitas com slogan. A marca “Tiririca” é originária de Minas Gerais e foi criada com esse nome devido às graminhas pragas entre as plantações. O slogan ia junto para ajudar a convencer os lavradores: “Tira Fogo”. Tem a marca “Trabalho”, da Bahia. Uma imagem de bigorna simboliza essa enxada. De Belo Horizonte há a etiqueta “Famosa”. A Enxada Calango é de Fortaleza, Ceará. Curiosa à marca “Teiú” de Sorocaba. De Sergipe, a etiqueta da marca Tatú, diz que é feita de aço puro. Na etiqueta da empresa Lopes, está escrito em destaque abaixo da “Enxada Jangada” a frase: “Devolva ao vendedor se apresentar defeito de fabricação”. De Porto Alegre, a “Enxada Ely”, diz ter têmpera garantida. De Varginha, a “Dous Leões”, assim mesmo que consta a marca com o “dous” em latim. Como destaque, a Rede Sul mineira afirma que o produto é de aço superior. Vem de Aracajú o “Gavião e o Javali,” como marca da enxada. O Ganso, a Gárgula, Tigre, Bem-te-vi, Gorila e Leão, são alguns dos bichos escolhidos pelos fabricantes em suas marcas de enxadas.

A marca “Coringa” é uma das mais famosas como produto exclusivo da Fábrica de Enxadas de Sorocaba. Entre dezenas de marcas do Brasil com uso das enxadas que foram forjadas na rua XV de Novembro pela equipe do Luiz Pinto Thomas, tem a Ave Maria, a Corta Aço, do Pará, Luar, Goitacás, de Campos e a Pelicano, do Rio de Janeiro. A marca “Raio” ousa escrever na sua imagem ilustrada com desenho de uma pessoas segurando um raio, que é exclusivamente fabricada para a lavoura brasileira. O concorrente fabricante da Enxada Santa Cruz não deixou por menos e lançou sua marca com destaque na etiqueta: “A única que não tens igual e combate todas, unicamente para as terras de Santa Cruz”.

Vale destacar o primeiro funcionário da Fábrica de Ferramentas e Ferragens, o saudoso Odorico da Graça Andrade. Ele morava na avenida Pereira da Silva, 316. Junto com sua esposa Ceci Bevevino, através do trabalho na fábrica de enxadas, o casal educou seus filhos para serem médicos. Odorico foi o “guarda-livros” da fábrica. Na época dos anos 30 ele morava, como solteiro, na casa dos pais, na rua Souza Pereira, vizinho do barracão onde se produziam as enxadas Zap e Coringa. E lá trabalhou até se aposentar em 1966, já como Indústria Metalúrgica NS Aparecida.

Infelizmente, a grande área de dez alqueires que foi a Siderúrgica Aparecida está abandonada às margens do rio Sorocaba. Morreu da “pandemia econômica do Brasil” no incentivo à produção siderúrgica do País.

Vanderlei Testa, jornalista e publicitário escreve às terças-feiras no Jornal Cruzeiro do Sul e aos sábados no www.blogvanderleitesta.com e www.facebook.com/artigosdovanderleitest.