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‘A Coisa’

15 de Julho de 2020 às 00:01

Jorge Alberto de Oliveira Marum

O infame inquérito instaurado em março do ano passado pelo presidente do STF, Dias Toffoli, e conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes para investigar supostas “fake news”, ataques e ameaças contra a corte e seus ministros é, sem exagero, a maior aberração jurídica já perpetrada no Brasil, pelo menos desde a revogação do famigerado AI-5. As inconstitucionalidades, ilegalidades e arbitrariedades são tantas que fica difícil resumi-las num artigo.

A “coisa” (como diz o jornalista José Maria Trindade, recusando-se a chamá-lo de inquérito) já começou de forma no mínimo duvidosa, pois Regimento Interno do STF (que só deveria servir para regular a tramitação dos processos na corte) prevê a possibilidade de investigação, pelo próprio tribunal, de crimes ocorridos em seu recinto ou dependências. Ocorre que, dando uma interpretação extensiva ao regimento, incabível em matéria processual penal, a investigação abrange atos praticados através da internet em todo o Brasil. Ora, é evidente que, exceto os prédios que compõem o STF em Brasília, o restante do território nacional não é recinto nem dependência da corte.

Um inquérito com um escopo tão amplo já seria espantoso. Todavia, não satisfeito, Moraes foi incluindo nele temas e investigados à medida que detectava novos focos de críticas ao tribunal ou seus ministros. Chegou a determinar a censura da revista Crusoé em razão de uma reportagem, que nada mais fazia do que reproduzir depoimento dado num inquérito que tramita regularmente. Recentemente, Moraes, sem previsão legal, prorrogou o andamento do inquérito, sinalizando que as investigações não serão encerradas enquanto os críticos do STF não se calarem.

Mais grave ainda é que Moraes sequer tem competência (no sentido jurídico) para presidir o inquérito, pois foi escolhido para isso por Toffoli burlando o sistema impessoal de distribuição do tribunal. Isso fere o princípio constitucional do juiz natural, que veda a existência de juízos ou tribunais de exceção. Também fere o princípio do juiz natural o fato de a maioria dos investigados ser composta de cidadãos comuns, que não têm foro especial no STF. Quaisquer investigações ou processos contra eles deveriam ser iniciados em primeira instância. Além disso, Moraes também é vítima das supostas ameaças, o que o torna impedido de presidir a investigação.

Como já alertado pela então Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, o malfadado inquérito também fere o sistema acusatório que caracteriza o processo penal brasileiro. Neste, as investigações devem, em regra, serem conduzidas pela polícia e as provas requeridas pelo órgão acusador, que é o Ministério Público, cabendo ao juiz não a presidência, mas sim o controle das diligências, a fim de garantir que os direitos dos investigados não sejam violados. Essa, aliás, é a essência do juiz de garantias, recentemente criado no Brasil sob aplausos do STF. No caso em pauta, as investigações foram iniciadas e correram por meses à revelia do Ministério Público e o juiz (Moraes), longe de garantir os direitos dos investigados, é aquele que comete as maiores violações.

E é no capítulo das violações de direitos que ocorreu a mais estarrecedora das arbitrariedades, que foi a prisão do jornalista Oswaldo Eustáquio. Sem sequer saber do que estava sendo acusado, o jornalista teve sua casa vasculhada pela polícia e não só ele como a mulher e os filhos tiveram celulares e computadores apreendidos. O sigilo de suas fontes foi violado e ele está proibido de usar seu instrumento de trabalho, que são as redes sociais, o que configura gravíssimo atentado à liberdade de imprensa. E tudo isso sob o silêncio covarde ou conivente da grande mídia, exceto a Jovem Pan, cujo programa “Os Pingos nos Is” realizou impressionante entrevista com o jornalista.

Instaurada e conduzida de forma inconstitucional e ilegal, “a coisa” está repleta de provas ilícitas e, portanto, não poderá servir para a condenação de ninguém, segundo a teoria dos frutos da árvore envenenada, muitas vezes já usada pelo próprio STF. Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, por sua vez, deveriam responder por crime de abuso de autoridade e, se tivéssemos um Senado com um mínimo de coragem para fazer valer o sistema de freios e contrapesos, sofrer impeachment.

Jorge Alberto de Oliveira Marum, promotor de Justiça em Sorocaba, bacharel pela Faculdade de Direito de Sorocaba, mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco), professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado na Faculdade de Direito de Sorocaba e de Direito Eleitoral e Direitos Humanos na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.