Buscar no Cruzeiro

Buscar

A bactéria que come garrafas de PET

25 de Setembro de 2018 às 08:00

O descarte irregular de garrafas pet é responsabilidade de consumidores e fabricantes. Foto: Pixabay

Em março de 2016 o mundo inteiro foi surpreendido com a notícia sobre um artigo científico publicado pela revista Science, uma das mais conceituadas do mundo, por dez pesquisadores japoneses. Principalmente o título “Uma bactéria que degrada e assimila PET” (tradução livre), caiu como uma bomba na imprensa do mundo todo (para falar a verdade, deu a impressão que alguns jornalistas só leram o título). Afinal, era algo que muitos (em especial a indústria do descartável) adorariam que fosse verdade: que um microrganismo presente em aterros sanitários devoraria as garrafas de água e refrigerante que jogamos fora em quantidade tão absurda. Essa enorme quantidade de garrafas desprezadas após o uso faz com que a consciência de consumidores e fabricantes pese, ainda que só um pouquinho.

Na verdade os cientistas foram a uma recicladora de PET (e não num aterro sanitário) e recolheram amostras de água de lavagem, sedimentos, solo e do lodo do tratamento da água. Numa dessas amostras, isolaram uma bactéria até então desconhecida e posteriormente chamada de Ideonella sakaiensis, que não só degradou o plástico como também o assimilou. Ou seja, o usou como comida. Só que o PET que serviu de alimento para a nova bactéria é um PET bem mais fácil de digerir do que o PET das garrafas, pois tem uma cristalinidade menor que 2%. Já o PET das garrafas de água e refrigerante tem peso molecular maior e uma cristalinidade cerca de dez vezes superior (p.ex. 20%).

Mas o que são cristalinidade e peso molecular e no que isso influi numa biodegradação? Os materiais poliméricos como o PET são constituídos de moléculas, como se fossem fios de cabelo. Quanto maior o peso molecular, ou seja, quanto mais compridos os fios, mais demorado vai ser para que eles sejam totalmente consumidos, mesmo se um microrganismo adorar seu gosto. Esses fios podem estar arranjados de forma mais cristalina ou não, ou seja, podem estar mais organizados ou não. É como se tivesse gasto 2 segundos penteando um cabelo e 20 segundos penteando um cabelo semelhante. É claro que o segundo cabelo vai estar mais penteado que o primeiro, ou seja, mais organizado, ocupando um volume menor. Para uma bactéria que tem que entrar no meio das moléculas para se alimentar, é bem mais fácil entrar numa estrutura menos organizada, mais aberta.

Saber que o PET foi inventado quase na metade do século passado e que a natureza criou um microrganismo que o consome, ainda que de forma bem lenta devido às dificuldades trazidas pelos altos peso molecular e cristalinidade, trouxe pelo menos duas conclusões/preocupações: 1) em termos de evolução das espécies, essa bactéria foi criada pela natureza num curtíssimo espaço de tempo; 2) provavelmente essa evolução não terminou e sim está apenas começando.

Prova disso foi um estudo publicado em março de 2018 pela conceituada revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America (em tradução livre: Anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos). A pesquisa foi assinada por 21 cientistas, incluindo dois brasileiros da Unicamp, e nela foram mostrados resultados de um experimento que provocou uma mutação artificial na bactéria, mexendo na enzima que ataca o PET, tornando-a mais voraz a ponto de destruir uma estrutura com cerca de 15% de cristalinidade, o que já é compatível com algumas garrafas comerciais.

Quer dizer que podemos jogar garrafas no lixo que a bactéria vai sofrer mutação e comer tudo? Nada pode estar tão errado quanto isso, e muito menos foi essa a conclusão e intenção dos cientistas. Os estudos foram extremamente úteis e importantes para tentarmos entender, pelo menos um pouco, como a natureza encara a poluição que causamos a ela. Pode até parecer que o jeito que a natureza deu, nesse caso, seja benéfico para o ser humano, pois tendemos a acreditar que podemos continuar com o atual comportamento de consumo, totalmente inconsciente.

Mas provavelmente estaremos apenas nos enganando.

Sandro Donnini Mancini é professor da Unesp-Sorocaba ([email protected]) e escreve quinzenalmente neste espaço