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A areia que forma a pérola

01 de Março de 2020 às 00:01

A areia que forma a pérola Crédito da foto: Divulgação / Arquivo JCS

Leandro Karnal

Norman Mailer foi um genial jornalista e escritor norte-americano (1923-2007). Junto a Truman Capote (1924-1984), faz parte de uma geração que aliava boa investigação com talento descritivo incrível. Lendo um prefácio de Patrick Pessoa ao texto de Ana Kutner (“Passarinho”, editora Cobogó), encontrei essa citação de outro grande autor, Gore Vidal: “Eu era um aristocrata refinado de Manhattan. Norman Mailer era um judeu pobre do Brooklyn. Ele teve todas as facilidades que eu não tive para se tornar um grande artista”. Parece uma piada, porém é uma intuição genial.

O dinheiro e a estabilidade favorecem estudos e bom ambiente. A matéria-prima do escritor (ou do artista em geral) é a vida e as biografias costumam ser mais complexas em meio a crises e desafios. Façamos uma distinção: se você deseja crescer no mundo do capital e dos investimentos, pertencer a uma grande família ajuda bastante. Seus colegas do jogo de polo ou amigos do colégio bilíngue podem ser uma rede de relações férteis. Antigamente, chamava-se meio social; hoje é mais conhecido por network. Quem aprendeu inglês cedo, viajou, viu o mundo de um camarote alto é preparado para pensar estratégias elevadas. Pode ser, apenas pode ser, que isso desenvolva um excelente ponto de partida para o sucesso. Existe meritocracia, mas o meio condiciona, ainda que não determine. Trabalhei entre alunos privilegiados e sei que o dinheiro da família não é suficiente para o sucesso, todavia ajuda muito. Historieta real que ouvi há alguns anos: uma talentosa e aristocrática arquiteta de São Paulo dizia ter contratado no seu escritório todas as colegas que tinham sido alunas geniais na USP. O cliente que queria um elaborado projeto de decoração confiaria mais em buscar a filha de um amigo de golfe ou próxima das filhas em Aspen do que alguém que dominasse perfeitamente uma comparação entre Le Corbusier e Lloyd Wright. De novo, origem condiciona, nunca determina. Temos boas exceções contra a história anterior. Ressaltaremos: exceções...

Distinto o campo da criação literária ou das artes em geral. Daí entra o chiste de Gore Vidal. O olhar original de criação, a sensibilidade, os paradoxos e o novo olhar não amortecido pelo conforto cotidiano costumam ser estimulados pelas crises. Norman Mailer vivera como o clássico judeu pobre de Nova York (mesmo tendo nascido em New Jersey). Vidal sempre manteve a ironia aguda, algo comum entre aristocratas. Mailer teve origem simples e lutou muito. Ambos tinham uma ironia, mais sutil em Mailer e abundante no outro. O recurso irônico é um distanciamento do mundo, quase uma defesa.

Poderia ser simplista (ainda que correto) supor que parte da ironia de Mailer vinha de ser um outsider pobre e judeu no mundo sofisticado de Manhattan. A de Vidal viria da sua homossexualidade? Difícil saber. Para o autor da frase, a pobreza familiar do colega escritor era um impulso, um fator decisivo.

O grande público gosta de regras gerais que expliquem sistemas amplos. Elas facilitam muito a apreensão do mundo. “Todo império cai por causa de...” ou “o Brasil foi formado pela soma de três culturas: indígena, negra e portuguesa”. As frases são boas. Quando se vai a fundo, encontramos tantos buracos em recortes amplos que eles ficam melhores na conversa de jantar leve. Porém... vamos lá. Seria uma regra a dificuldade de ser um lapidador de talentos literários?

Machado de Assis era negro e pobre. Cruz e Souza tinha escravos na ascendência. A grande Conceição Evaristo nasceu na periferia de Belo Horizonte. Carolina Maria de Jesus lançou seu olhar agudo (“Quarto de despejo”) a partir de um ambiente quase ágrafo. O que dizer do imenso Lima Barreto? Todos, negros e negras de origem humilde e de talento incontestável. Seria isso que formou seu olhar original? Machado teve um começo árduo e cresceu socialmente. Lima Barreto viveu no limiar da miséria e do alcoolismo quase sempre. Nascer fora de grupos de elite? Também poderíamos dizer de Clarice Lispector, imigrante russa-ucraniana-judia que enfrentou desafios enormes. Viva a turma de Mailer!

Aí vamos além da conversa social... Ariano Suassuna era filho do governador da Paraíba. Oswald de Andrade viveu e cresceu na aristocracia milionária cafeeira. Sentiu a crise já maduro. A grande Lygia Fagundes Telles não nasceu entre milionários, mas a mãe pianista e o pai procurador e promotor público garantiram estabilidade. O tio fazendeiro de Guimarães Rosa patrocinou os estudos do autor, da medicina à diplomacia. Cecília Meireles tinha pai funcionário do Banco do Brasil e cedo viajou pelo mundo. Há gênios de origem aristocrática, de classe média e de origem humilde.

A origem social não explica autores. Quantidade de melanina também não. O que parece ser comum a todos é uma originalidade do olhar, uma maneira de ver o mundo, uma capacidade de distanciamento que pode ser, talvez, a infância solitária de Cecília Meireles ou a dor social de Lima Barreto ou a densidade interna de Clarice Lispector. Havia milhares de pessoas na favela, porém só Carolina de Jesus olhou para seu mundo e colocou no papel, com erros inclusive, mas escreveu (e com estilo próprio). Um certo distanciamento de tudo e um impulso de colocar por escrito o que angustia são uma marca de todos. Lembrando, primeiramente, que Mailer e Vidal foram, ambos, grandes autores. Por fim, e fundamental: boa escola pública ajuda muito jovens talentos. Fica a dica... Boa semana para todos nós.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.