Mirian Zacareli
Longevidade e transformação digital: o desafio da reinvenção após os 70
Vivemos um tempo em que a longevidade é celebrada como uma conquista da ciência e da qualidade de vida. As pessoas vivem mais, com mais saúde e disposição. Entretanto, há uma questão que ainda precisa ser debatida com mais profundidade: como manter a relevância e a conexão profissional diante de um mundo que se transforma de maneira tão acelerada, impulsionado pela inteligência artificial e pela revolução digital?
Tenho observado com atenção o comportamento de profissionais que construíram carreiras notáveis, deixando legados de competência, liderança e inovação. Muitos desses profissionais, agora aos 70 anos ou mais, continuam aplicando os mesmos argumentos e ferramentas que os tornaram bem-sucedidos no passado. Suas trajetórias merecem respeito e admiração, pois pavimentaram o caminho para o progresso que vivemos hoje. No entanto, o mundo mudou — e muda a cada instante.
Vivemos a era da inteligência artificial, da automação e da conectividade total. A forma de trabalhar, ensinar, aprender e liderar foi profundamente transformada. O que antes era considerado experiência suficiente para orientar decisões hoje precisa ser complementado com novas competências, especialmente as digitais.
Percebo um GAP geracional importante: há pouquíssimos registros de novas experiências profissionais após os 70 anos. As referências dessa geração ainda estão ancoradas nos sucessos do passado, sem clareza sobre as possibilidades do futuro. É como se a sociedade, em vez de incluir e atualizar esses profissionais, os tivesse colocado em uma espécie de “modo de espera”’, valorizando apenas o que já foi feito — e não o que ainda podem fazer.
Essa desconexão é perigosa, pois priva a sociedade de um patrimônio imensurável de sabedoria acumulada e, ao mesmo tempo, causa frustração e sentimento de inutilidade em pessoas que têm muito a contribuir. Tenho visto relatos de executivos, professores e consultores altamente qualificados que, ao se depararem com a nova dinâmica do mercado e das tecnologias emergentes, sentem-se excluídos, decepcionados e até inseguros quanto à própria sobrevivência financeira e emocional.
É urgente repensar esse cenário. Não podemos permitir que a longevidade se transforme em sinônimo de estagnação. Precisamos criar novos espaços de aprendizagem e convivência intergeracional, em que o conhecimento do passado e as ferramentas do futuro se encontrem.
Programas de letramento digital, mentorias reversas, hubs de inovação inclusivos e formações continuadas são caminhos viáveis para promover essa integração. Imagine o poder de uma sala onde jovens profissionais compartilham as lógicas da IA e da cultura digital, enquanto profissionais seniores oferecem visão estratégica, ética e senso histórico.
Essa combinação é valiosa demais para ser desperdiçada.
Mais do que cursos e treinamentos, é necessário um movimento cultural que quebre o preconceito silencioso que associa envelhecimento à obsolescência. Experiência não é sinônimo de rigidez — assim como juventude não é garantia de inovação. O verdadeiro diferencial está na capacidade de cada um de nós manter a curiosidade viva, o desejo de aprender e a disposição de se reinventar.
A longevidade é, sem dúvida, um presente. Mas só se transforma em legado quando vem acompanhada de curiosidade, atualização e abertura para o novo. A geração que hoje chega aos 70 não deve ser vista como um capítulo encerrado, mas como uma nova edição — revisada, ampliada e digitalmente conectada.
Por isso, proponho que iniciemos uma reflexão coletiva sobre o papel da longevidade na era digital. Universidades, empresas, conselhos e governos podem — e devem — criar programas que conectem gerações, valorizem o conhecimento acumulado e preparem todos para o futuro que já chegou.
A reinvenção não tem idade. O que envelhece não é o corpo, mas a resistência em aprender. Que cada novo dia nos lembre que o mundo continua em movimento — e que ainda há muito espaço para quem tem história, sabedoria e coragem de recomeçar.
Mirian Zacareli é sócia efetiva da Academia Sorocabana de Letras; consultora executiva em Inovação e Transformação Digital; presidente do Conselho do Ecossistema Região Administrativa de Sorocaba BDT Brasil Digital para Todos