Marcelo Silvano de Camargo
Graça
No mundo contemporâneo, sobretudo no meio intelectual ocidental, observa-se uma crescente perda da espiritualidade, em parte impulsionada pela visão mecanicista da Ciência de Newton, que reduziu o universo a leis físicas e mensuráveis. Esse paradigma afastou o sagrado da experiência cotidiana e das academias. No entanto, a redescoberta dos escritos alquímicos de Newton por renomado economista John Maynard Keynes revelou um lado oculto do cientista: um profundo interesse pelo esotérico. Para o fundador da Psicologia Analítica, Carl Gustav Jung, a alquimia simboliza o processo de individuação, sendo ponte entre ciência e espiritualidade. Sua psicologia analítica resgata o valor do inconsciente e do mito como caminhos para reconectar o homem moderno ao sagrado perdido.
Um fator capital para a perda da espiritualidade no mundo contemporâneo é resultado não só da dominância da razão científica, mas também da rigidez dogmática das religiões institucionais, que muitas vezes sufocam a experiência interior do sagrado. O diálogo a seguir procura refletir a dificuldade experimentada pelo mundo contemporâneo para dar significado às vicissitudes da vida recorrendo ao racionalismo...
Cena: Um jardim atemporal ao entardecer em local perdido nas brumas do tempo. As folhas balançam levemente com o vento e se espalham entropicamente pelo chão. Maria a Judia, alquimista vestida com túnicas claras e verdadeiras, caminha descalça de modo sereno. Sir Isaac Newton, com toda pompa e circunstância, está com um livro em mãos sentado sob uma macieira.
Maria a Judia: Sir Newton, vejo que o Senhor está mergulhado em pensamentos. Que ocupa sua mente neste instante?
Isaac Newton: Senhora Maria, minha cara alquimista, meditava sobre a graça divina. Como pode Ele, sendo justo, perdoar os iníquos? Como pode a luz habitar com as trevas?
Maria: Ah, essa é uma questão antiga como os próprios céus. Tu, que estudas os astros e leis naturais, sabes que há ordem no caos. E na alma humana, há sombras (Jung, ao longe, arregala os olhos...) — mas também centelhas da luz divina.
Newton: Concordo. E, no entanto, minha razão se debate. A Escritura diz: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus.” Mesmo eu, tão dado ao estudo e à disciplina, reconheço falhas em mim. Como pode a graça alcançar quem não merece?
Maria: A graça, meu amigo, não se mede por merecimento. (Agostinho sorri monalisticamente...) Ela é dom — como o ouro que se forma após longas purificações. O pecador não é amado porque é puro, mas purificado porque é amado.
Newton: Forte é essa verdade. Mas então, qual é o papel da justiça divina? Deus não pode simplesmente ignorar o pecado.
Maria: Deus não ignora. Ele transforma. Como o alquimista que não despreza o chumbo, mas trabalha com ele até que resplandeça como ouro. A graça não é negligência; é obra de transformação.
Newton: Então o arrependimento é o fogo, e a graça é o sopro que alimenta essa chama?
Maria: Belamente dito. O arrependimento prepara o vaso. A graça, então, o enche com essência celestial. É preciso quebrar o orgulho para que a misericórdia entre.
Newton: Às vezes penso se minha mente, tão habituada aos cálculos e leis, não torna meu coração frio à misericórdia.
Maria: Não creio. O mesmo Deus que criou as leis da gravidade também criou o perdão. E ambos revelam Sua ordem e Seu amor. Tu estudas a criação d’Ele com reverência. Isso já é humildade.
Newton: E o pecador que não busca? Que se esconde, como Adão no Éden?
Maria: Deus sempre toma a iniciativa. O Cordeiro foi imolado antes da fundação do mundo. Mesmo aquele que se esconde será chamado. E a graça o encontrará, ainda que seja na caverna mais escura do seu ser.
Newton: Então ninguém está fora do alcance?
Maria: Ninguém. A graça é como o sol: toca os campos férteis e os espinhosos. A diferença está em quem se abre à luz.
Newton: Minha cara alquimista, mesmo os mais sábios sucumbem. A graça de Deus alcança também os pecadores?
Maria: A razão revela leis; a fé, misericórdia. Somos todos indignos — mas é justamente aí que a graça brilha mais.
Newton: Então, a salvação não é mérito, mas dom?
Maria: Exatamente. A luz divina não escolhe vasos perfeitos, mas corações contritos e esperançosos...
Marcelo Silvano de Camargo é sócio efetivo da Academia Sorocabana de Letras.