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Dom Julio Endi Akamine

Dilúvio universal: mito ou realidade?

21 de Fevereiro de 2025 às 22:03
Cruzeiro do Sul [email protected]
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A Bíblia recolhe alguns relatos míticos para transmitir a verdade revelada, mas isso não a torna uma coleção de mitologia. Da mesma forma como Deus se serve da filosofia e da ciência para transmitir a verdade salvadora, assim também se serviu do mito para oferecer aos homens a salvação e para conduzi-los à verdade plena. Reconhecer a presença de relatos míticos na Bíblia não significa absolutamente negar seu caráter histórico, sobretudo dos evangelhos. Mesmo que algumas passagens tenham a estrutura de um relato histórico, a exegese e a hermenêutica bíblica devem nos ajudar a não confundir a história vertical com a horizontal, a interior com a exterior.

Além disso, mesmo que tenha assumido alguns mitos, a Bíblia nunca se submeteu a eles. Uma leitura comparativa revela com clareza não só a originalidade de sentido, mas também a profundidade antropológica, a superioridade vocacional e a sublimidade divina do relato bíblico.

Exemplo disso é o relato do dilúvio universal (Gn 6,5-8;7,1-5.10).

O relato do dilúvio universal inicia com um juízo terrível por parte de Deus. “O Senhor viu que a maldade dos seres humanos na terra era grande e que todos os projetos de seus corações só tendiam para o mal, o tempo todo” (Gn 6,5). Antes de as águas tudo cobrirem, a terra já estava imersa no pecado e na maldade. Deus penetra o coração de todos e fica entristecido por constatar que a maldade humana inunda e afoga a terra com os seus projetos maldosos. A reação de Deus é de pesar: “Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o ser humano na terra, e isso lhe doeu no coração” (Gn 6,6).

É admirável como o Gênesis descreve a reação de Deus à degeneração moral da humanidade: “isso lhe doeu no coração”. Deus não é indiferente à desoladora situação da humanidade, mas sente e participa. Deus sofre ao contemplar a sua amada criação, que considerada “muito boa”, entrar numa rota que se concluirá irremediavelmente na autodestruição.

Deus percebeu que a humanidade já se encontrava arruinada e destruída pela maldade de suas ações e pela perversidade de seus projetos. A destruição da humanidade já estava inexoravelmente dentro dela mesma, mas, mesmo nessa situação, que parecia sem saída, Deus encontrou um remédio: para curar o mal universal, o Senhor se serve de um homem e de uma arca insignificante. Essa é a tática divina da salvação: a partir de meios humildes, Deus realiza a salvação. Assim Deus age ao longo de toda a história da salvação: de um nômade, Abraão, faz surgir um povo para si; de um grupo de escravizados do Egito, Deus preanuncia um povo nascido do batismo; de um pequeno resto, anuncia a salvação universal, e, na plenitude do tempo, por meio de um simples operário de Nazaré, Deus realiza a salvação de todos nós.

Noé é o primeiro de uma série de personagens humildes que se tornarão, por graça de Deus, portadores da salvação que Deus opera. Em Noé o juízo divino de condenação foi maravilhosamente superado pela misericórdia do mesmo Deus. Deus é, de fato, juiz, mas é também salvador. Podemos dizer que é mais salvador do que juiz, ou melhor, que o juízo de condenação e salvação, em Deus, não estão em contradição com Ele mesmo.

Além disso, o evento de Noé é um estupendo ícone bíblico do cuidado com a vida. Exatamente quando o mundo parece destinado à dissolução por causa da corrupção e da violência dos homens (Gn 6,5-7.13), o justo é chamado por Deus a trabalhar para construir uma arca (Gn 6,14-16), símbolo de nossa terra, na qual possam ser salvas todas as espécies vivas (Gn 6,19-21), também aquelas não imediatamente úteis ao homem, como os animais impuros (Gn 7,2.8). De fato, não se cuida da terra sem zelar por todas as formas de vida (Pontifícia Comissão Bíblica, O que é o Homem?, 91).

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba