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Nelson Fonseca Neto

Letra Viva

13 de Fevereiro de 2025 às 22:00
Cruzeiro do Sul [email protected]
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. (Crédito: DIVULGAÇÃO)

Fissura

Comecei a ler pra valer com dezesseis anos, no finzinho do ensino médio. Passei minha educação básica cumprindo tabela com dignidade. Minhas notas eram boas, eu fechava o ano no terceiro bimestre. Eu não passava vergonha quando o assunto era geografia ou história. Tinha notas altas em redação. Mas faltava algo.

Faltava o lance de ler pra valer, ou seja, ler não por causa da nota, mas pra ver a vida de outra forma, pra conhecer novos mundos, pra me entender melhor. Como eu disse, acordei aos dezesseis e não parei mais. Eu realmente não me lembro do que me impulsionou naquela época.

Sou professor no ensino médio e tenho vários alunos lendo pra caramba, por prazer. Eu acho bacanérrimo. Eles perguntam se eu era assim, e eu tenho que falar a verdade: até os dezesseis eu estava mais preocupado com a escalação do São Paulo. Eu passava os minutos de tédio desenhando variações táticas num campinho tosco.

Vejo meus alunos hoje falando com propriedade sobre questões relevantes de geopolítica e resolvo olhar pras minhas preocupações de adolescente. Eu ficava ligando pro programa do Wanderley Nogueira pra saber se o Cafu renovaria o contrato com o São Paulo.

E aí eu engatei a primeira marcha aos dezesseis anos e não parei mais. Meus alunos perguntam quantos livros já li. Não faço ideia, mas foi bastante, e digo isso sem querer me exibir. Virei leitor porque tinha de virar, achei o maior barato, não consigo me imaginar sem ler. É um vício, e a sorte é que todo mundo acha bonitinho. Tenho de falar a verdade pra vocês: eu não leio porque eu sou bom moço ou porque quero salvar o mundo; eu leio porque não sei fazer outra coisa na vida.

A gente vai passando por um monte de perrengues quando envelhece, mas também vai obtendo umas vantagens. Uma delas é poder falar mais as coisas na lata. Outra vantagem: a gente vai se concentrando nas coisas que está com mais vontade de fazer. MInha parada com a leitura ilustra bem isso.

Ler, desde os dezesseis, tornou-se vício, paixão, mas no meio do caminho eu tentei dar um quê de ordem pra coisa. Quando comecei a dar aula, eu ia lendo todos os livros de um autor. Sintam o drama do cara que se forçou a ler a obra completa do José de Alencar. Eu fiz isso e penso se teria estômago pra encarar a bronca de novo. Dá pra responder logo: não tenho estômago. Olho pra aquilo que nem o cara fora de forma olha pra foto dos tempos de maratonista. Dá uma preguiça do cão.

Preguiça de ser sistemático, que fique claro. Hoje eu leio mais do que antes, só não tenho paciência pra lidar com livro chato. Ontem mesmo uma aluna perguntou se eu largo na boa um livro na metade. Respondi que não precisa ser na metade; pode ser nas primeiras páginas mesmo. Foi-se o tempo do voto de confiança. Já passei horas chatérrimas tentando vencer autores malas.

Mas eu tenho que tomar cuidado com o que escrevo. Fica parecendo que estou cuspindo no passado. Não é o caso. Ser metódico foi importante pra minha profissão. Fez com que eu não passasse vergonha na frente dos alunos. Bom, pelo menos não por falta de conhecimento.

Passei as últimas semanas lendo autores contemporâneos. Tem sido bom porque eu sentia falta de histórias com coisas da minha época, da minha vida. Tem gente que diz que a literatura está morrendo, o que eu acho de uma burrice enorme. Tem muito autor bom por aí.

Não muito tempo atrás, eu estava viciado em romances do século 19. Minha vida corria em torno de carruagens, óperas, polcas, mazurcas, duelos, imperadores, tropas, parteiras, latrinas, essas coisas do aprazível século 19. Foi bom? Foi, e muito, mas eu precisava de livros com internet, shopping center, tv a cabo.

O problema é que, hoje mesmo, meio de bobeira, li as páginas iniciais de Oliver Twist, do Dickens. Aí bateu a vontade de ler todos os romances dele de novo. E é o que vai ser nas próximas semanas. Com vício não se brinca.