Alexandre Rocha Almeida de Moraes / Flávio Eduardo Turessi
35 anos de crimes hediondos: o que esperar?
Em seu art. 5º, inc. XLIII, a Constituição Federal de 1988 dispôs que “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. A partir do sistema de tripartição de poderes desenhado na Carta Política de 1988, devidamente asseguradas autonomia e discricionariedade ao Congresso Nacional para, de forma exaustiva, atestar a natureza repugnante de determinados delitos e consequências mais severas para seus autores, o art. 5º, inc. XLIII, reveste-se da natureza de mandado expresso de criminalização e, em tese, deveria amparar a criação de um regime jurídico mais rigoroso aos crimes etiquetados como hediondos e ao seus equiparados, como o tráfico ilícito de drogas.
Cuida-se, aliás, de expressão do movimento Law and Order, movimento de política criminal originado nos Estados Unidos da América na década de 70 do séc. XX, com a pretensão de melhor enfrentar a criminalidade já em ascensão naquele período e, no ponto, diminuir o excesso de benefícios legais previstos na legislação em favor dos criminosos.
No Brasil, promulgada a Constituição-cidadã em 5 de outubro de 1988, a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, somente veio a ser editada após forte clamor público provocado com a divulgação, pela imprensa, dos sequestros dos empresários Abílio Diniz e Roberto Medina, e das consequências do cativeiro. Fruto do Projeto de Lei nº 50/1990, apresentado pelo então senador Odacir Soares em 17 de maio de 1990, a Lei dos Crimes Hediondos -- Lei nº 8.072/1990 --, já experimentou profundas alterações em sua redação original que, indelevelmente, desvirtuaram seus propósitos gestacionais.
Nos dias de hoje, as consequências penais e processuais penais decorrentes da hediondez não são as mesmas vistas quando da apresentação da lei. Em sua redação original, a Lei nº 8.072/1990, em seu art. 2º, inc. II, vedava a concessão de fiança e liberdade provisória como contracautelas para que o acusado pudesse responder solto à ação penal pela prática de crimes hediondos e/ou assemelhados. A expressa previsão legal, naquela época, autorizava a manutenção da prisão em flagrante, fazendo com que o autor de crimes hediondos respondesse preso à acusação.
Contudo, antes mesmo de qualquer alteração textual, não tardaram a ser publicadas respeitáveis decisões judiciais proferidas Cortes Superiores brasileiras afirmando a desarmonia da disposição legal com princípios e garantias individuais. Assim, foi editada a Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, que suprimiu a locução “liberdade provisória” do inc. II, do art. 2º, da Lei de Crimes Hediondos, permitindo a concessão de liberdade provisória sem fiança aos crimes hediondos e assemelhados e, no limite, que os réus respondessem soltos às graves imputações.
Inaugurou-se, pois, um tempo de contorcionismo ao texto do poder constituinte originário, criando ao mesmo tempo verdadeira injustiça processual: criminosos menos perigosos poderiam somente responder em liberdade mediante o pagamento de fiança, enquanto criminosos hediondos poderiam, pelo subjetivismo de quem decide no caso concreto, responder ao processo em liberdade sem qualquer caução.
O cumprimento de pena no regime integral fechado que fora inicialmente imposto pelo legislador ordinário de 1990 aos crimes hediondos e assemelhados, sem possibilidade de progressão aos regimes semiaberto e aberto, também não tardou a ser revisto pelas Cortes Superiores brasileiras e, na sequência, pelo próprio Congresso Nacional.
Na leitura do (Plenário) Supremo Tribunal Federal (STF), a obrigatoriedade do cumprimento de pena por crime hediondo em regime integral fechado violava a garantia da individualização da pena (CF, art. 5º, inc. XLVI) e, no limite, fechava os olhos para a ressocialização do preso, um dos escopos da progressão (confira-se: STF (Tribunal Pleno), Habeas Corpus nº 85.929-7/SP, rel. min. Marco Aurélio, julgado em 23.2.2006). Assim, a partir dessa orientação Pretoriana, a mesma Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, retirou a expressão “integralmente” do art. 2º, º 1º, da Lei de Crimes Hediondos, substituindo-a pela expressão “inicialmente”, permitindo a progressão de regimes aos condenados por crimes hediondos. Mas não foi apenas isso.
A fim de se evitar que o condenado por crimes hediondos ou assemelhados forçosamente iniciasse o cumprimento de sua pena no regime fechado (ainda que possível a progressão), o STF voltou a se posicionar e, incidentalmente, declarou inconstitucional a nova redação conferida ao art. 2º, º 1º, pela lei de 2007, afirmando que cabe ao julgador, e não ao Congresso Nacional, fixar o regime (inicial) de cumprimento de pena, de acordo com o caso concreto (confira-se: STF (Pleno), HC nº 111.840/ES, rel. min. Dias Toffoli, julgado em 27 de junho de 2012).
A Lei de Crimes Hediondos completará 35 anos de vida em 2025 e, no dia 18 de dezembro (quarta-feira), na última semana de trabalho parlamentar antes do recesso de fim de ano, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, sensível ao exponencial aumento da criminalidade urbana e organizada que assola o Brasil e que, sem distinção, atinge a cada uma das diversas classes sociais existentes e a todas de uma só vez, debruçando-se sobre os crimes hediondos e assemelhados e sobre a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), aprovou projeto que proíbe a progressão de pena para os condenados por homicídio qualificado, estupro e outros crimes hediondos (PJ 853/2024).
A proposta é do senador Flávio Arns (PSB-PR), com parecer favorável do senador (Marcos Rogério (PL-RO) (disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/12/18/ccj-condenados-por-homicidio-e-estupro-nao-terao-progressao-de-pena#:~:text= A%20Comiss%C3%A3o%20de%20Constitui%C3%A7%C3%A3o%20e,(PL%20853%2F2024). Acesso em: 21 dez. 2024). A medida legislativa, caso avance e seja finalmente aprovada no Congresso Nacional, certamente será objeto de análise pelo STF que, como Corte Constitucional, irá se debruçar sobre a sua compatibilidade com o texto da Lei Maior.
É difícil um prognóstico dessa futura e eventual decisão, mas, pelo histórico aqui reportado, não é improvável que se veja mais do mesmo. Nessa quadra, distanciando-se de radicalismos e teses de autoridade, é sempre oportuno dizer que não há liberdades públicas absolutas e que, para além da ressocialização, a sanção penal também tem por finalidade a prevenção, servindo de contra estímulo para o cometimento de novas violações penais. Afinal, quando se poupam os lobos, sacrificam-se as ovelhas.
Alexandre Rocha Almeida de Moraes é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), mestre e doutor em Direito Penal pela PUC/SP. Professor de Direito Penal e Criminologia da PUC/SP e da Unisanta / Santos.
Flávio Eduardo Turessi é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), pós-doutor em Ciências Jurídicas y Derecho Público pela Universidad de Las Palmas de Gran Canária (Espanha), doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), mestre em Direito Penal pela PUC-SP, professor universitário.