Dom Julio Endi Akamine
Herege e heresia
Um patrulhamento ideológico tem contaminado a vida eclesial, promovendo o mau hábito de apontar os adversários e os que não seguem a mesma cartilha como hereges. O uso indiscriminado desse conceito causa confusão nos fiéis. Nesse clima de polarização religiosa, é oportuno um esclarecimento sobre o que é heresia e quem pode ser declarado herege.
O conceito de heresia evoluiu ao longo da história. Nos dois primeiros séculos, não havia uma definição desenvolvida de heresia. No primeiro milênio, o conceito era mais eclesiológico do que dogmático: a Igreja era considerada como o sacramento da salvação, por isso tudo (ideias e comportamentos) o que distanciava dela era herético. Na Idade Média se distinguia pouco a heresia como negação de uma verdade da fé da insubordinação em relação à autoridade eclesiástica. Depois da Reforma a questão da heresia começou a ser abordada mais do ponto de vista noético. Chegou-se assim a definir a heresia como “uma doutrina que se opõe imediata, direta e contraditoriamente à verdade revelada por Deus e proposta autenticamente como tal pela Igreja”.
Todavia essa definição tinha uma séria limitação: caracterizava a heresia somente em seu aspecto objetivo. Para que haja verdadeira heresia, porém, é preciso também levar em conta a heresia no fiel que a comete e enquanto pecado. Assim é preciso considerar o ato não somente no seu objeto, mas na sua motivação: o apego à própria opinião por orgulho.
Por isso a tradição teológica acrescentou à definição objetiva de heresia uma precisão decisiva. Não basta errar em matéria de fé para cometer esse pecado; é preciso que o erro em matéria de fé seja acompanhado da obstinação, da pertinácia ou contumácia. Com efeito, uma proposição pode ser em si mesma falsa ou contrária à fé, mas não ser herética. No senso estrito do termo, a heresia depende também da atitude de quem sustenta uma falsa proposição. Há pecado de heresia somente quando quem professa um erro em matéria doutrinal se recusa ser instruído e corrigido pela Igreja e se obstina manter sua opinião pessoal contra ela.
Com efeito, o Catecismo da Igreja Católica (n. 2089) define com clareza: “Chama-se heresia a negação pertinaz, após a recepção do Batismo, de qualquer verdade que se deve crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dessa verdade”. Em poucas palavras, por heresia se entende objetivamente uma falsa doutrina e subjetivamente o fato de se obstinar em professá-la. Assim herético é aquele que segue a sua ideia até desenvolvê-la numa teoria sem se importar com o fato de se colocar em contradição com a Igreja e sua Tradição. Às vezes nem mesmo se dá o trabalho de se informar, confiando na sua própria capacidade e inteligência.
O herege é aquele que substitui a fé por uma opinião humana, não somente enquanto conteúdo objetivo, mas também quanto ao motivo de adesão: ele não crê realmente porque a Verdade absoluta assim se revelou, mas porque assim vê as coisas: prefere confiar na própria inteligência em vez de se apegar à Revelação.
Geralmente a heresia se forma partindo da percepção muito viva de um elemento em si verdadeiro, mas que foi isolado dos outros e se desenvolveu de maneira precipitada sem conservar as suas relações com o todo. As heresias nasceram de deduções perseguidas de maneira unilateral e desequilibrada; originaram-se de um princípio de tradição isolado do conjunto da fé, erigido como verdade absoluta, à qual foram ligadas conclusões incompatíveis com a harmonia geral da religião e da doutrina tradicional.
Pascal propôs que a heresia é a incapacidade de ter uma visão global e integral do mistério cristão. “Acontece que não podendo conceber a relação entre duas verdades opostas e crendo que a confissão de uma comporte a exclusão da outra, eles se apegam a uma, excluindo a outra, e pensam que nós fazemos o contrário. Ora, a exclusão é a causa da heresia deles; e a ignorância que nós temos da outra, causa as suas objeções. Jesus Cristo é Deus e homem. Os arianos, não podendo conciliar essas coisas que creem incompatíveis, dizem que é homem; nisso são católicos. Negam, porém, que seja Deus; nisso são heréticos. Todos erram tanto mais perigosamente quanto mais seguem cada um uma verdade. O erro deles não consiste em seguir uma falsidade, mas em não seguir a outra verdade”.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.