Nildo Benedetti
Minissérie da Netflix: ‘Corpo em Chamas’ (parte 4)
Rosa e a fêmea do louva-a-deus
Como escrevi acima, a série “Corpo em Chamas” expressa um ponto de vista do cineasta sobre a personagem. Esse ponto de vista é baseado na sua interpretação pessoal dos fatos.
A personagem Rosa é a protagonista do filme e, como todo ser humano, é extremamente complexa de ser analisada psicologicamente pelo espectador. Contudo, uma brevíssima passagem ilumina um aspecto interessante de sua personalidade. É quando sua filha Sofia ouve na televisão alguém que diz “seu nome vem da crença popular de que a fêmea devora o macho” e a menina imediatamente muda de canal.
Em meu livro “Filmes Para Pensar” - volume 2, publiquei um artigo intitulado “Alguns aspectos sobre desejo e amor tratados no cinema”. (O livro está gratuitamente disponível em https://cinereflexao.wordpress.com/). Também me referi à questão de desejo e amor nos demais livros que publiquei e que também estão disponíveis no mesmo blog.
Escrevi que o psicanalista lacaniano Massimo Recalcati, em seu livro “Ritratti del Desiderio”, apresenta dez formas de desejo. A terceira forma, a que dá o título de “Desejo e Angústia”, é uma das mais perturbadoras. Penso que essa forma de desejo se aplique à personagem Rosa. Tratarei dela a seguir, algumas vezes transcrevendo quase literalmente trechos do texto de Recalcati e de meus livros anteriores.
Para a psicanálise lacaniana, “desejo” é conceito fundamental e não se restringe ao desejo sexual, como vulgarmente entendemos o termo. Desejo não pode ser confundido com necessidade: esta é dirigida a um objeto capaz de satisfazer uma urgência por exemplo, a água que sacia a sede , mas o desejo é nutrido não por objetos, mas por sinais e tem um longo período de duração. Em sua forma mais elementar, o desejo é assimilado à vocação, ao impulso, à inclinação, à aspiração que move nossos interesses. É a realização plena da vida no trabalho, no amor, no ato de estar junto a alguém, na cultura, no ato de escrever etc. Ele já se manifesta nas crianças quando mostram aptidões por números, desenhos, histórias etc.
O desejo no ser humano se formula a partir de uma ampla gama de sentimentos, emoções, conhecimentos. A possibilidade de experimentá-los nasce da capacidade inata de formular uma linguagem com sintaxe e semântica. Como os animais são incapazes de formular uma sentença, o resultado é que não existe desejo no mundo animal, que é o mundo da necessidade, dos instintos primários. Por exemplo, o instinto materno que se apresenta entre os animais, não existe no ser humano e, por isso, cada mãe é única com respeito à gestação, cuidado com o filho etc. e não segue um modelo preestabelecido que seria esperado se só um instinto estivesse agindo, como ocorre entre os animais.
O terceiro retrato do desejo descrito por Recalcati pode ser representado por um inseto, a fêmea do louva-a-deus. Nesta estranha espécie, as fêmeas são muito maiores do que os machos. No momento de relações sexuais, de prazer máximo, a fêmea mata o macho, deixando-o sem possibilidade de fuga. É uma simbiose entre sexo e morte. É isto que Sofia ouve na televisão: “seu nome vem da crença popular de que a fêmea devora o macho” e que se aplica a Rosa que destrói vários amantes nas suas relações.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec